O Nascimento de Brasília
Luiz Carlos Bettiol*
Uma capital bem no meio do país foi, por muito tempo, uma aspiração nacional e uma antiga cláusula constitucional sempre negligenciada até 1955.
Durante a campanha para a eleição de outubro daquele ano a proposta ganhou corpo nas ruas e um lugar de destaque nos palanques e nos programas de governo dos candidatos. Eleito Juscelino Kubitschek, Brasília tornou-se a meta síntese do seu plano de governo e, por consequência, o alvo preferido da oposição.
O apoio arrebatado dos estudantes da época, em particular dos acadêmicos de direito, foi decisivo na sustentação do Plano de Metas e para a mudança da Capital. Em 1957, o Centro Acadêmico XI de Agosto e o Centro Acadêmico de XI de Maio da Faculdade de Direito de Goiás realizaram, em São Paulo e em Goiânia, a Primeira Semana Nacional Mudancista em apoio à transferência da Capital. Nessa ocasião ouviram um comovido apelo de JK : “Presidente da República não me pego de pedir-vos ajuda”.
Natural que os estudantes de Direito daquela quadra, comprometidos com a mudança, cúmplices da empreitada, uma vez inaugurada a cidade fossem atraídos dos seus Estados de origem para a aventura de viver a cidade e ali começarem a vida, como fizeram o Antonio Carlos Ozório, o Pertence, o Mauricio Correa, o Gordilho, o Arturo Buzzi, o Grossi, o Eduardo Ribeiro, o Humberto Gomes de Barros, o José de Campos Amaral, o José Jerônimo, todos com forte militância na política universitária em São Paulo, no Rio, na Bahia, no Rio Grande do Sul, em Alagoas, enquanto Brasília era construída.
Não foi por outra razão que, quando aqui cheguei, já encontrei duas colegas da minha Turma (1959), Áurea Campos Koelliker e Rosa Villa Rios, associadas ao Dr. Inezil Penna Marinho, no primeiro escritório de advocacia do Plano Piloto instalado num trailer estacionado em frente ao Bloco VI, na Esplanada dos Ministérios, onde funcionava apertado todo o aparato judicial existente e que, na sua maior parte, veio para Brasília entre contrariado e resignado.
Alguns ministros não escondiam seu desagrado e seu inconformismo. Dava para entender, Brasília, nos primeiros dias, era pouco mais que um canteiro de obras. O que não faltava era poeira. Poeira de todo lado. Vermelha. Não só os ministros dos tribunais, mas boa parte dos funcionários graduados, se pudessem, esquecem a tal dobradinha, o apartamento funcional que juntada na mesma superquadra o Ministro e o contínuo, dariam o dito pelo não dito, tomariam o primeiro Electra e voltariam voando para o Rio de Janeiro. Mas como, se o Governo não fazia outra coisa senão dar cumprimento a um vetusto preceito constitucional?
1. A própria OAB chegou a aprovar um parecer contrário à transferência do STF e do TFR e votou uma moção de aplauso ao TST por resistir à mudança e quando esta postura foi contestada por alguns conselheiros, o Presidente Alcino Salazar ameaçou renunciar… O Conselho Federal, depois de muita resistência, de muita hesitação, só se transferiu para Brasília em 1986, vinte e seis anos depois, já na Presidência de Hermann Assis Baeta.
2. No Bloco VI, destinado ao Ministério da Justiça, funcionava o TFR do Min. Afranio Costa, com seus 9 ministros, o TSE do Min. Nelson Hungria, o Tribunal de Justiça, do Des. Hugo Auler, com seus 7 desembargadores, uns poucos juízes de Direitos e substitutos, a Justiça do Trabalho, a Subprocuradoria Geral da República do Min. Carlos Medeiros, o MP local, do Dr. Guimarães Lima. A Justiça Federal viria a ser criada alguns anos depois.
3. O TFR ocupava dois ou três andares. No térreo foi instalado o Plenário. A bancada entalhada, as cadeiras de espaldar alto, a tribuna, a barra e o cancelo torneados, tudo em madeira maciça, escura, e as cortinas de pesado veludo púrpura tudo vindo às pressas do Rio de Janeiro positivamente não se harmonizavam com a arquitetura do edifício. Só seus ministros tinham acanhadas salas privativas.
O Tribunal de Justiça não tinha turmas nem sessões: só o Pleno e seus integrantes despachavam num salão comunitário, a Sala das Becas. Os juízes trabalhavam nas salas de audiências ligadas ao cartório, sempre com portas abertas para o corredor, sem seguranças, sem catracas, sem crachás. Nunca se soube do sumiço de um processo ou de agravo sério que justificasse cautelas especiais.
Funcionários, poucos, só os essenciais. Alguns deles se confundiam com a instituição de tão presentes, aplicados e eficientes. Lembro-me da Telma, no TFR, do Hugo Mosca no STF, do Costa Manso no TSE, do Arthur Cesar no MP. Não havia nada que não soubessem ou não resolvessem.
Edifício próprio só mesmo o STF, mesmo assim reduzido ao prédio-sede na Praça dos Três Poderes, com a escultura do Cescchiati que um dia o CV. A. “XI de Agosto” pensou em oferecer a Brasília. O Presidente, Min. Barros Barreto, tinha uma sala ampla, mas os demais ocupavam duas salas, uma delas dividida entre o assessor jurídico e a secretaria que também era datilógrafa. Um assistente de plenário e um motorista, e estava completo o time. Afora os elegantes móveis do Sérgio Rodrigues, luxo nenhum, nenhuma ostentação, um cenário quase espartano, bem diferente das suntuosas instalações atuais, palácios projetados com o claro propósito de apartar os advogados e os jurisdicionados.
As sessões começam pontualmente à uma da tarde no mesmo auditório do plenário atual. Com processos em pauta ou não, os advogados não faltavam às sessões. Assistiam todas do começo ao fim para verem e ouvirem os grandes nomes da advocacia, como Sobral Pinto, Nehemias Gueiros, Dario de Almeida Magalhães e Saulo Ramos, este bem mais moço, mas já um craque. Nos intervalos, ministros e advogados tinham tempo, vagar e gosto para conversar descontraidamente. Hanhemann Guimarães, Cândido Motta, Luiz Gallotti e Pedro Chaves procuravam esse contato direto com os advogados. Era a forma de informarem-se de tudo e tomarem o pulso da comunidade jurídica. Os advogados, de sua parte, mantêm-se atualizados com a jurisprudência e as tendências da Corte. Aprendi com o Min. Vitor Nunes Leal a decompor as decisões em palavras chaves, os thesauri, que passavam para fichas que se tornavam preciosas ferramentas para recursos com base na divergência jurisprudencial, uma espécie de banco de dados pessoal e um valioso ativo profissional.
Nesse cenário e com esses dados os advogados que oficiarem nos tribunais em Brasília desenvolveram uma incrível aptidão de desvendarem, decifrarem, intuírem, pressentirem e prognosticarem os resultados dos julgamentos. Raramente errávamos. Nesse ponto levávamos uma enorme vantagem sobre os advogados de fora. Sem Internet, sem TV Justiça os advogados de outras comarcas só muito tempo demais tomavam conhecimento das tendências do tribunal.
Advogar nos tribunais superiores, não demorou muito, tornou-se uma especialidade, tantas as regras e embaraços regimentais que foram se acumulando. Éramos substabelecidos para cuidar das causas dos bons escritórios dos Estados. A situação só se alterou quando os grandes escritórios, com forte demanda no contencioso administrativo e com perfil operacional distinto fundado no sistema do time sheet se viram forçados a abrir representações em Brasília. Cuidaram, então, os advogados locais de formarem uma clientela própria, com casos especiais, para um atendimento também especial e personalizado. Aliás, este ainda é o formato atual dos escritórios pioneiros. Não cresceram muito, nem pretendem crescer senão na medida em que novas áreas de demanda forem surgindo, como as agências reguladoras.
A advocacia nos anos 60 era limitada. Com a acanhada atividade econômica da cidade, o foro local era pouco demandado. Afora questões de família, e criminais, a mais solicitada era a JCJ da Justiça do Trabalho com um notável Juiz, o Dr. Gustavo Pena de Andrade, que, em reclamação que ajuizei, desconsiderou, ou para usar a linguagem atual, modulou, ou relativizou a imunidade de jurisdição de um Estado estrangeiro para condená-lo a indenizar a despedido por falta grave do motorista da embaixada que engravidara a camareira da embaixatriz. Isso nos idos de 1963.
Seguia nesse compasso a advocacia em Brasília até ganhar fôlego e escala com a criação da Justiça Federal e por conta de um certo dispositivo constitucional que, em boa hora, o Senador Mauricio Correia inseriu na Constituição facultando ao autor demandar a União no Distrito Federal. A Justiça Federal do Distrito Federal logo se impôs como rápida e eficiente, o que bastou para que começasse a receber e a julgar as demandas contra a União que em outros Estados se arrastaram por anos. E de foro alternativo, num instante, passou a ser o preferido, para alegria dos advogados da comarca.
A Advocacia em Brasília no início e por muitos anos guardou um modelo puramente liberal. Alguns advogados se reuniam num escritório, mas na verdade atuavam separadamente ciosos de sua individualidade profissional. A sociedade de advogados, hoje tão comum, era rara in illo tempore e as que sobreviveram não cederam às exigências do mercado nem se tornaram grandes empresas. A cordialidade, o cavalheirismo, a lealdade sempre esteve presente entre os advogados e o relacionamento destes com os juízes sempre foi respeitoso e cordial.
Não se trata de um depoimento de quem tem nostalgia da própria juventude ou saudades de um Brasil que lhe era mais familiar. Até porque é forçoso reconhecer que tudo cresceu: o país, a população, a economia e em consequência a demanda judicial. A Justiça não podia mesmo manter-se naquela escala provinciana, quase paroquial. Tinha mesmo de crescer e modernizar-se para atender a multiplicação de novas questões e o crescente universo de jurisdicionado. A Justiça, em linhas gerais, melhor e melhorou muito. Sobretudo democratizar seu acesso pelo povo e a informação para todos. Os juizados Especiais, as ações coletivas, o controle externo, a informatização próxima do processo sem papel e da justiça on line são uma realidade bem-vinda.
Mas que dá para suspirar de saudade daquele tempo dá.