OS BONDES

Manoel Elpídio Pereira de Queiroz Filho.

O bonde era o principal veículo coletivo. Elétrico. Lá vem o bonde a toda, a oito, porque oito eram os pontos de velocidade. Corria sobre trilhos e era muito barulhento. No teto tinha uma haste comprida chamada alavanca, com uma rodinha na ponta superior que fazia contato com fio de eletricidade. De vez em quando se soltava e ouvia-se o grito do condutor, em geral português: “Olha a alabanca”. Existia o bonde aberto e o fechado. O bonde fechado era o “Camarão”. Inteiro vermelho, de metal e com duas portas laterais, uma na frente e outra nos fundos, além do lugar do cobrador, que controlava a passagem com catraca antes de um espaço com bancos que chamavam “cozinha”. As duas eram abertas e fechadas sob comando elétrico do motorneiro e do cobrador, respectivamente. O “Angélica” só tinha Camarão: Praça da Sé, Rua da Liberdade, Rua Vergueiro, Rua do Paraíso, Av. Paulista, Av. Angélica, Rua das Palmeiras, Largo do Arouche, Praça da República, em frente à Escola Caetano de Campos, onde eu estudava no primário, Rua Ipiranga, Av. São João e Praça do Correio. Era uma das linhas longas de São Paulo e voltava pelo mesmo caminho.
O mais extenso trajeto do Camarão era o da linha Santo Amaro, que começava na Praça da Sé e seguia pelas Ruas da Liberdade, Vergueiro, Rodrigues Alves até o Instituto Biológico, onde começava a ferrovia numa linha reta até Santo Amaro, correndo por terrenos sem nenhuma construção. Atualmente essa ferrovia é a Avenida Ibirapuera. O “Camarão” de Santo Amaro era maior e tinha um enorme holofote na frente. Apesar de haver sinal luminoso no cruzamento da ferrovia do “Camarão” com a Rua Ibirapuera que ia para Santo Amaro e que fazia um desvio em U, contornando e atravessando a ferrovia, virava e mexia um automóvel era atropelado, resultando mortos e feridos. O cruzamento dava passagem para a autoestrada onde ficavam as “boates” e o Cassino de Vila Sofia, em Santo Amaro.
Havia dois tipos de bondes abertos, um pequeno e outro bem maior para os bairros mais populosos. Um dos bondes abertos menores era o “Cidade Jardim”, tinha uma 2.ª seção que começava onde mais ou menos está o Restaurante Bolinha e onde terminava o “Jardim Europa”. Precisava pagar outra passagem e ele atravessava o rio Pinheiros sobre uma ponte de ferro tipo ferrovia, só para ele, no mesmo lugar onde é a ponte atual da Cidade Jardim, de concreto e construída só para o trânsito de automóveis.
O bonde aberto tinha duas frentes, onde ficavam os motores iguais separados do corpo do bonde por uma divisória de alto a baixo. O acesso era pelo estribo. Assim, o bonde não precisava manobrar para ir em direção contrária. Era só o motorneiro mudar de lugar levando as manivelas do motor, de aceleração e do breque, e a divisão dos fundos passava a se chamar “cozinha”. Os bancos dos passageiros eram reversíveis.
Colunas desciam do teto até os estribos com espaço entre elas e com balaústre onde os passageiros se apoiavam para subir no estribo e entravam para os bancos. Estes eram de madeira colocados transversalmente um atrás do outro. O condutor, segurando nos balaústres, corria pelo estribo de banco a banco, com as notas de dinheiro numa das mãos e uma bolsa a tiracolo cheia de moedas e ia recebendo as passagens, estivesse o bonde parado ou andando. Era chamado condutor porque dava sinal puxando uma cordinha em toda a extensão do bonde no alto, perto do teto, que terminava numa sineta. Daí a célebre marchinha de Carnaval:
Seu condutor, dim, dim,
Seu condutor, dim, dim,
Para o bonde para o
Meu amor subir
Os jornaleiros, em geral moleques, com um maço de jornais pendurados por correia a tiracolo, subiam nos estribos segurando nos balaústres para vender os jornais correndo de banco em banco.
Havia os passes vendidos pela Light, de papel de diversas cores e valores. A falta de moeda era tamanha que os passes viraram a moeda de troca corrente em toda a cidade. O passe vermelho, 200 réis, era o comum e o verde só para estudantes, 100 réis. Os estudantes usavam o bonde desde o curso primário, tal era a segurança para transitar na cidade, só havia batedor de carteira, cujo interesse eram os adultos. Estudantes e moleques não queriam pagar o bonde, guardando o passe para comprar sorvete, pipoca, amendoim ou picolé de vendedores ambulantes que se postavam na porta das escolas. Para driblar o cobrador ficavam no estribo ou na cozinha, quando este chegava por perto fugiam passando entre os bancos ou atravessando a cozinha até o estribo da entrevia. E era um brinquedo de pegador entre cobrador e passageiro. No destino saíam ou saltavam para pegar outro bonde e recomeçar a carona. A mesma brincadeira fazia os Acadêmicos de Direito.
Havia os bondes de cargas e os de passageiros. Estes, quando de cor verde, eram para “Operários” e, às vezes, o bonde aberto grande puxava um reboque de cor verde. Para os operários a passagem custava 100 réis com passes verdes.
O que só ocorria nas grandes partidas de futebol – Corinthians, Santos, Palestra Itália e São Paulo – passou a acontecer quando aumentou a população da cidade. Os bondes abertos passaram a circular apinhados de gente. Pendurada na cozinha, no estribo, inclusive o da entrevia e até junto ao motorneiro. Passou a ser comum a notícia nos jornais: “Caminhão varre o estribo do bonde. Há mortos e feridos”.
O Vilelão nunca andou de ônibus ou de bonde, os únicos meios de transportes públicos coletivos que existiam na cidade de São Paulo. Foi a única pessoa que nunca soube na vida o que era bonde ou ônibus urbano. No primeiro e segundo anos da Faculdade tinha um Renaultzinho que andava sempre cheio de gente ou então pegava táxi ou carona com colegas. Mas chegou uma fase da vida em que perdeu o “Renault” e o apartamento da Rua Duque de Caxias e passou a cantarolar:
Vou me mudar soluçante
Do apartamento elegante
Para a Casa do Estudante
e o Bar do Chico Elefante
De manhã tinha de assistir às aulas ou, no mínimo, comparecer à Academia de Direito. Na esquina, em frente à Casa do Estudante, tinha um bar de um português que, como todo o mundo, era seu compincha, encantado e deslumbrado por ele. Toda manhã o Vilelão saía da Casa do Estudante, atravessava a Avenida São João e, no bar, pedia dez mil réis emprestados para o português, pedindo para pôr na conta. Este fornecia porque sabia que ele pagaria quando recebesse uns cobrinhos. Às vezes o Vilela “pindurava” uns meses até ter oportunidade de fazer o pagamento. Pegando o dinheiro, tomava um táxi. O motorista, no nosso tempo chofer, perguntava onde queria ir e o Vilela: “Vai pela Av. São João e Líbero Badaró até o taxímetro marcar dez mil réis”. Em geral dava para ir até a esquina da São João com a Líbero Badaró. Daí para diante ia à pé até a Faculdade.
E por falar em bondes, precisamos lembrar os seus anúncios e avisos, sempre do lado de dentro, na frente e nas laterais do teto na encosta dos bancos do bonde aberto para apreciação dos passageiros. Anúncios:
Veja ilustre passageiro
o belo tipo faceiro
que o Senhor tem a seu lado
No entretanto, acredite,
quase morreu de bronquite,
salvou-o o Rhum Creosotado.
(consta que da lavra de Olavo Bilac)
Emulsão de Scott.
Mitigal, acaba com as coceiras.
Pílula de vida do Dr. Ross
fazem bem ao fígado de todos nós.
Tinha uma figura de pescador de pé de capa e chapéu oleados carregando nas costas um grande bacalhau:
Óleo de fígado de bacalhau.
Larga-me, deixa-me gritar.
Contra tosse, bronquite e rouquidão
tome xarope São João.
Um homem de peito nu musculoso vergando uma barra de ferro e escrito embaixo da figura:
Vanadiol
Para o número 1 e o número 2:
Regulador Xavier.
Contra prisão de ventre
complexo Almeida Prado.
Biotônico Fontoura.
Avisos:
Gentileza com gentileza se paga.
Cuidado sempre, evitar acidentes é dever de todos.
São Paulo é uma cidade limpa.
A saída de passageiros precede a entrada.
É proibido falar com o motorneiro.

No “Camarão”, na lateral externa:
SÃO PAULO É O MAIOR CENTRO INDUSTRIAL DA AMÉRICA LATINA.