As Arcadas curvam-se, respeitosas, para o Mestre
Quem não se lembra de seus primeiros mestres? Ditosos tempos em que as preocupações nem existiam. Os cheiros da infância, como lembraria Marcel Proust. De fato, o fascínio dos momentos iniciais da existência é inigualável. Nessas saudades, seguramente os mestres ocupam lugar sobranceiro. Talvez muito também pelo deslumbramento da descoberta de um mundo que se apresenta.
Mas como “tudo é composto de mudança”, os anos passam mudando as visões. Já na juventude, o charme do magistério não é mais o mesmo. E, em tempos ginasiais, com as ansiedades, os mestres vão sendo olvidados. Mais adiante, no colegial, viram meros instrumentos do aprendizado. E no banco da faculdade, apesar de alguns poucos calouros lobrigarem novamente o encanto pelo professor, o dia a dia, as tarefas, os exames, enfim, tudo contribui para dissipar aquela fugidia lembrança.
No entanto, alguns mestres não passam por tal vicissitude, no coração de seus alunos. Um deles, indubitavelmente, é o Professor Goffredo da Silva Telles Jr.
Nestes últimos dias, pelos seus noventa anos, muitas foram as homenagens. E por que então Migalhas, que bem reconhece ter parcos atributos, quer agora fazer sua mesura? Porque Migalhas quer homenageá-lo não pelos motivos que muitos já conhecem – de defensor da democracia, de filósofo, de advogado, e até mesmo de mestre aposentado das Arcadas – mas pela razão talvez não muito conhecida, a de que ele, com seus dezoito lustros, ainda é Professor. Sim, completando noventa anos neste dezesseis de maio, Goffredo da Silva Telles Jr. é ainda Mestre. E exerce o magistério com vigor invejável. Não, infelizmente não em suas Arcadas do Largo de São Francisco, pois a compulsória o pegou em 1985. Entretanto, Goffredo Telles Jr., mestre na acepção máxima do termo, continua ensinando o Direito, que para ele, na definição perfeita, é a Disciplina da Convivência. E leciona para os amigos que à volta de sua mesa – em seu escritório – insistem em se juntar, em seus valiosos livros e ainda por meio de seus inúmeros discípulos.
Falar da história do nonagenário mestre seria impossível. Disso ele mesmo se encarregou em “A Folha Dobrada – Lembrança de um Estudante” (Nova Fronteira, 1999). Livro marcante, cujo primeiro capítulo com as memórias de sua avó – a grande dama paulistana Olívia Guedes Penteado – pode ser considerado um dos mais belos textos da literatura brasileira. Querer desabusadamente resumir os estudos do Professor seria um vitupério. E para evitar isso, ele próprio tratou de fazer a síntese, sempre lógica, no recém lançado “Estudos” (Juarez de Oliveira, 2005). Mas fica aqui o registro para uma ímpar obra no mundo: “O Direito Quântico” (1970). Ligar a biologia à ética, aos costumes, quando DNA era uma novidade, foi uma verdadeira revolução. Com a obra o mestre ganhou, num primeiro momento, apenas o desdém de alguns de seus pares. Hoje, mesmo que não às escancaras, certamente estes voluntariosos reconhecem seu vanguardismo.
Mas, afinal, onde Migalhas funda a categórica assertiva de que o Mestre Goffredo não é esquecido por aqueles que passaram diante de sua mesa? Ah! E como é doce essa resposta.
Já eram quase seis horas da tarde da última segunda-feira, quando um leitor notou a atitude de um primeiranista no hall de entrada na Faculdade de Direito da USP. Vendo que figuras bem-apessoadas entravam na Academia e se dirigiam para o primeiro andar, curioso, ele seguiu uma delas, para ver o que se passava. Subiu às escadas e divisou que à direita havia um certo bulício. Ele, que já tinha explorado o prédio, sabia que era ali o Salão Visconde de São Leopoldo. Conquanto admitisse não estar devidamente trajado, resolveu ir em frente, e apurar melhor. No cartaz, descobriu ser uma festa de aniversário de um professor. E viu o nome: Goffredo Telles Jr. Apesar de novo na academia, já tinha ouvido qualquer menção a respeito do Mestre.
Com ares doutorais, relembrando a parenta do interior que se gabava em contar aos vizinhos que seu sobrinho fazia “advocacia”, sentiu-se encorajado a ir adiante. Numa fila na entrada, viu que os participantes compravam um livro. Tirou as economias do bolso, pois não podia fazer feio, e adquiriu os “Estudos”. Pegou a obra, e armado com sua soberba juvenil, entrou pisando firme no salão. À noite, com aquelas pessoas, o salão parecia ainda maior e mais belo. Foi a um canto, para melhor observar.
Como o relógio ainda não tinha dado as dezoito badaladas, hora em que estava marcado o acontecimento, decidiu folhear o livro, única coisa que o faria não ser notado. Era um legítimo penetra!
Nas orelhas do livro, conheceu a rica biografia do autor. Curioso, como aliás devem todos ser, começou a compulsar a obra. Deteve-se no índice. Tudo ali era novo: normas, sanção, justiça, filosofia. De repente, um capítulo quase o fez cair de costas: “O DNA e o Direito”. Meu Deus, o que era aquilo? Foi direto à página 205 para ver se o DNA a que o autor se referia era o mesmo ácido desoxirribonucleico que teve de estudar para ingressar na faculdade. E era! Preferiu, ao invés de ler primeiro aquele capítulo, começar a saborear a obra pelo seu início.
Nas primeiras linhas, ele que era um ledor voraz, percebeu que o profundo conhecimento das palavras, combinada com uma concatenação lógica, criava uma raríssima perfeição na escrita, tornando a leitura agradável e fácil.
Em poucos minutos, terminou o primeiro capítulo. Achou, apressado, que o Mestre tinha deixado alguma coisa no ar. Faltava algo… Dizer que o “amor constitui a inspiração do Direito”, para ele, petulante, não bastava.
Mesmo assim continuou a leitura. À medida que os convivas iam chegando, ele avançava lendo. Quando aportou um ex-ministro, que só na televisão havia visto, ele aprendia no livro que “a norma jurídica é um imperativo autorizante”.
Agora estava em companhia de um deputado, e mais outro. Um senador, um grande jornalista, vários advogados, professores, artistas e estudantes. Aquilo, para ele, parecia uma desordem.
Tentava, na medida do possível, ficar absorto para ler o instigante livro. Assim feito, aprendeu a diferença entre sanção e coação; a validade das leis; a legitimidade das leis (e que lição importante tinha ali!); o direito subjetivo; os direitos humanos; a justiça. E podia agora explicar para a tia do interior que ele cursava, em verdade, a Disciplina da Convivência Humana.
Apesar de ansioso, sentia-se compelido a parar por uns instantes a leitura. Ah! Justo na hora que saberia, afinal, o que o DNA tem a ver com tudo isso.
Alguém iria falar.
Nossa! O grande salão agora era pequeno. Pessoas que nunca tinha sonhado em ver estavam ali, junto com ele, dividindo aquele espaço. Todos, com um brilho no olhar, com o mesmo espírito acadêmico. Aproximou-se de onde iriam falar para descobrir quem era aquele mestre que conseguia levar tanta gente assim, e de tão alto valor moral, para uma festa de aniversário.
O presidente da Associação dos Antigos Alunos, José Carlos Madia de Souza, faz a abertura. Explica que o mestre, emocionado, não estaria ali. Os presentes pareciam já prever isso. E aí novo susto. Ora, mesmo assim foram! O que era aquilo?
Ao lado da esposa do Mestre, dra. Maria Eugenia, e da filha dra. Olivia, o diretor da Faculdade, Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi, falou do professor. O representante dos alunos, Fernando Borges Filho, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto ressaltou a importância do mestre.
É passada a palavra ao Professor Tércio Ferraz Sampaio, que pelo que apurou o jovem, tinha substituído o mestre Goffredo na cátedra. Ah! o professor Tércio explica como o mestre Goffredo liga o DNA ao Direito. Que bela oração. Vem Flávio Bierrenbach. Demonstra seu encantamento pelo Professor.
E o Professor Celso Lafer lê uma emocionante mensagem enviada pelo mestre.
Talvez um barítono, Bierrenbach entoa uma trova acadêmica. De súbito, senhores, senhoras, moços e moças, juntos, acompanham emocionados. Os olhos do jovem contemplam a multidão em branco e preto atualizar-se colorida. Sublimada, a imagem do mestre destacava-se, ainda que ausente. E com olhos marejados, depois de tantos ditos, tantas palmas, tantas músicas cantadas, o acadêmico via curvas as arcadas.
Curvas como são e, ainda, curvadas. Como se imitassem o mesmo gesto comovido, agradecido da multidão, que, agora, a ele reconhecia ordenada.
De fato, deslumbrado com a cena, o jovem entende que aquele heterogêneo grupo estava, em verdade, ordenado. Estava em ordem! Eram suas referências que não lhe mostravam o que, agora, era patente: antes, “aquela desordem era uma ordem que não lhe convinha”.
Entretanto, havia ainda um mistério a ser desvendado. Por que o jovem achava que o mestre Goffredo, sempre lógico, não teria se aventurado a explicar mais a fundo aquele primeiro mandamento: “ama teu próximo como a ti mesmo”? E eis que estava em sua frente a chave do mistério: Goffredo da Silva Telles Jr. Era ele a síntese da entrega desse carinho, desse afeto, desse amor. E as pessoas que ali estavam, com seus corações abertos, tentavam apenas fazer justiça, ou seja, “retribuir com equivalência aquilo que lhes foi dado” pelo mestre.
O jovem despia-se naquele momento de sua presunção e se sentia ordenado com todos. Era mais um novo aluno do Professor Goffredo da Silva Telles Jr.
Nota: Esta matéria foi extraída do site Migalhas.