Dalmo Dallari se Aposenta e Profere Sua Aula de Despedida na USP

“Na realidade do século XXI, o Estado é necessário, para dar eficácia ao Direito e para agir visando assegurar a todos o efetivo acesso aos direitos consagrados na Constituição”

Um dos mais brilhantes professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Dalmo de Abreu Dallari, proferiu, nesta quarta-feira dia 21 de novembro de 2001, sua “Aula Final”.
Dallari está se aposentando este ano e foi homenageado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, ganhando o “Prêmio XI de Agosto” deste ano. Após as homenagens, teve início sua última aula, não para uma das turmas do primeiro ano da Velha Academia, para quem ministrou, por mais de 37 anos, a cadeira de Teoria Geral do Estado, mas uma aula para alunos, ex-alunos, advogados e outros professores, no pátio das Arcadas, bem no centro da Faculdade.
Nesta aula de despedida, o professor abordou a questão da evolução histórica do papel do Estado e a necessidade de consolidação de um Estado atuante, “para dar eficácia ao direito e para agir visando assegurar a todos o efetivo acesso aos direitos consagrados na Constituição”. Dalmo destacou, ainda, a definição de um novo conceito de Constituição adequado à realidade deste século, deixando de ser mero manifesto político, e consagrando-se como verdadeira lei superior. Para o professor, a Constituição deve ser “expressão formal, dotada de plena eficácia jurídica, dos princípios e dos direitos fundamentais da pessoa humana”.
Seria difícil traçarmos aqui um resumo da carreira de Dalmo de Abreu Dallari. Jurista de renome, combativo advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP, Dallari exerceu também – entre outros – os cargos de diretor desta mesma faculdade e secretário dos Negócios Jurídicos na prefeitura de São Paulo, além de ser juiz do Tribunal Permanente dos Povos e assessor do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Em homenagem ao mestre que se despede publicamos abaixo a íntegra de sua Aula Final.

Aula Final

  1. Neste lugar tão rico em história, neste momento que será marcante em minha história pessoal, encerro uma etapa de minha vida que teve a duração de meio século. Este é um ato de despedida e, no entanto, não é um momento triste, ou, pelo menos, apenas triste, por alguns motivos que me são muito significativos. Um deles é que não vou proferir agora um canto de adeus, pois o número de convites que tenho para prosseguir atestam que não é ilusória a convicção de que minhas condições físicas, minha mente e meu intelecto me permitem continuar caminhando com firmeza, o espírito forte, a mente capaz de lançar e aceitar desafios e de continuar dialogando com diferentes gerações, como venho fazendo há cerca de cinquenta anos.
    Outro motivo para que esta despedida não seja marcada pela tristeza é que continuo com a mesma disposição de trabalho e de luta em favor da pessoa humana que eu tinha no começo dessa caminhada, além de manter a convicção firme de que escolhi o caminho certo e de que devo prosseguir, com a maior intensidade possível, nesse trabalho e nessa luta. O terceiro motivo, que é o primeiro deles em importância, é que chego ao final desta etapa sentido-me feliz e privilegiado, por estar recebendo uma calorosa demonstração de afeto, de caminho e de amizade, de minha família muito querida e de generosos amigos e companheiros que fui amealhando ao longo de minha caminhada e que aqui vieram para dar a este encontro o sentido festivo de uma calorosa confraternização. Sou imensamente grato a todos os que, aqui presentes ou em comunhão espiritual, me acompanham e ajudam neste momento de fim e recomeço.
  2. Amigos e companheiros. Desde o momento em que me foi sugerido que desse no pátio da Faculdade a aula que encerraria simbolicamente minha carreira de professor desta escola revivi tantas lembranças e tantas emoções que tenho a impressão de que em poucos dias vivi alguns séculos. E pensei muito no que deveria dizer, no que gostaria de dizer, não querendo que a memória afetiva, a evocação de momentos que foram de muita felicidade e, às vezes, de profunda tristeza, dessem à minha fala o tom melancólico de um cântico de adeus. Por outro lado, sendo minha última aula formal, achei que deveria dizer alguma coisa sobre o Estado presente e futuro, uma vez que essa temática foi a opção teórica em torno da qual desempenhei minha docência. Mas também não considerei apropriado falar nesta oportunidade com a frieza e o formalismo de um técnico ou cientista desumanizado, desprovido de emoções, além de tudo porque jamais foi esse meu estilo mas também porque, devo reconhecer, eu não seria mesmo capaz de sufocar minha afetividade. A par disso tudo, não posso nem devo esquecer que aqui, nesta casa, fui aluno e professor, fui aprendiz mas também procurei ajudar a aprender, em todas as minhas palavras e ações expressei, ao mesmo tempo, razão e emoção, e da simbiose de ambas resultaram as características de minha intensa participação na vida desta escola. E este é o momento de falar um pouco disso, de fixar alguns pontos dessa passagem que para mim foram especialmente marcantes e de deixar registrado, falando para o futuro, algo de fundamental que eu gostaria de dizer aos alunos de amanhã.
  3. Minha caminhada foi longa. Saí de Serra Negra, meu querido recanto oculto nas montanhas, no ano de 1947. Eu tinha então 15 anos de idade, só havia cursado o grupo escolar e não sabia exatamente o que deveria ou poderia fazer e que dificuldades iria enfrentar. De meu pai eu trazia o exemplo de honradez, da religião do trabalho e também da indignação perante qualquer injustiça. De minha mãe eu já ouvira muitas histórias sobre alguns personagens míticos das Arcadas do Largo de São Francisco, dos quais ela falava com admiração e que conhecia por suas leituras. Desse modo as Arcadas passaram a povoar os meus sonhos. E de ambos eu sempre recebi ensinamentos, pela palavra e pelo exemplo, que me diziam que eu deveria procurar crescer interiormente, dando prioridade aos valores espirituais, preservando minha consciência livre, procedendo com humildade sem subserviência, agindo com dignidade em qualquer circunstância, ainda que isso custasse a limitação de meus horizontes.
    Assim cheguei à Faculdade do Largo de São Francisco, em 1953. Embora aluno do curso noturno, minha integração ao ambiente foi imediata e total. Vivi intensamente o pátio, fui jornalista acadêmico, presidente da Academia de Letras, político atuante, chegando a candidatar-me à presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas fiz dessa militância um complemento das aulas dos mestres e fui observando o funcionamento das instituições e o comportamento dos políticos, verificando quanta injustiça era praticada, quantas ambições pessoais e quantas vaidades buscavam satisfação, quanta mediocridade se consagrava, à custa do verdadeiro interesse público. Nesse ambiente e nessa circunstância houve um mestre que exerceu extraordinária influência em minha formação jurídica: esse mestre, que continua conosco, a ministrar suas lições, foi o professor Goffredo Telles Júnior, através de cujas aulas aprendi que o direito autêntico não é uma criação artificial do legislador, não é o produto das imposições do Estado, mas nasce no coração dos homens, é expressão da exigências éticas superiores da humanidade. Foi a partir dessa noção fundamentalmente humanista que formei e desenvolvo minhas concepções jurídicas, que se aperfeiçoaram e reforçaram através das experiências que a vida me proporcionou.
    Quinze anos depois de ter saído de Serra Negra fiz concurso para a livre-docência em 1963 e por essa via teve início minha carreira de professor. Minha opção foi pela Teoria Geral do Estado e isso se deveu à percepção de que direito e Estado são inseparáveis, pois se o primeiro é indispensável para preservação da liberdade e da dignidade humana e para a garantia de justiça nas relações sociais, sem o Estado o direito não tem a força necessária para se fazer respeitado, pois o egoísmo humano, que Kant considerou parceiro inseparável, mas adverso, do sentimento de solidariedade, inventa pretextos para a negação ou a falsificação do direito verdadeiro. Foram considerações dessa ordem que me levaram a concorrer ao cargo de Professor Titular de Teoria Geral do Estado em 1974, apresentando uma tese sobre O Futuro do Estado.
    Naquele momento parecia inevitável a opção do mundo entre o sistema capitalista, comandado pelo Estados Unidos, e o sistema que se autodenominava socialista, tendo como líder mais ostensivo um capitalismo de Estado. Desde 1948 já se havia proclamado, através da Declaração Universal de Direitos aprovada pela ONU, que havia tremendas agressões à pessoa humana em, praticamente, todas as partes do mundo, que perduravam discriminações obviamente injustas, que era necessário superar o egoísmo dos indivíduos, das camadas sociais privilegiadas e dos Estados, para que se reintroduzisse a ética nas relação sociais e para que o humano fosse a preocupação predominante em todas nas relações sociais de todos os níveis. Ao mesmo tempo, foi reconhecida e proclamada, sobretudo através dos Pactos de Direitos Humanos, a necessidade de se atribuir um papel ativo aos indivíduos, às organizações sociais e ao estado para a correção das injustiças e a efetivação dos direitos reconhecidos como fundamentais por serem inerentes à condição humana.
    Vem daí uma série de inovações práticas e formulações teóricas, às vezes ambíguas, visando a reorganização da sociedade, incluindo a criação de novos instrumentos de ação político e social. Foi nesse ambiente, e sob influência de novos meios de comunicação de massa que tornaram impossível o isolamento dos povos e a ocultação das injustiças e outras violências contra a pessoa humana, que se desenvolveram novas idéias sobre o Estado e seu papel social. A conjugação de pressões internacionais e fatores negativos internos levou ao desmoronamento da União Soviética e, buscando aproveitar a aparente inexistência de oposição ao capitalismo materialista, à formulação da proposta de globalização e, conseqüentemente, de extinção da soberania e, por decorrência, do próprio Estado.
    Na realidade, sob o rótulo de globalização o que se buscava era a supremacia absoluta dos interesses econômicos e financeiros, que se movimentariam, sem barreiras, no espaço mundial, podendo imigrar para onde fosse mais conveniente, de um momento para outro, sem qualquer restrição e sem responsabilidade pelos graves prejuízos sociais decorrentes dessas migrações. Entretanto, um surto de nacionalismos, bem como a resistência de Estados poderosos, que persistiram em preponderância aos interesses de seus respectivos povos, tudo isso deixou evidente que a globalização era mais um rótulo ou uma pretensão do que uma realidade. Além de tudo, muitas ações levadas a efeito sob inspiração da pretensa teoria da globalização acarretaram, rapidamente, o aumento das disparidades econômicas entre os povos e graves crises internas, provocadas pela estagnação econômica, o desemprego e o aumento da marginalização social.
  4. Enquanto isso acontecia, foi-se ampliando e aprofundando, atingindo praticamente o mundo todo, a consciência de que sem dar efetividade ao artigo 1º da Declaração Universal de Direitos, segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, não haverá a eliminação das injustiças e de que sem justiças não poderá haver paz. Desenvolveu-se, então, a idéia de universalidade dos direitos humanos, intensificando-se a busca de justiça para todos na ordem interna dos Estados, ao mesmo tempo em que a dimensão universal dos direitos humanos vai ganhando efetividade. Um exemplo claro desses avanços é a multiplicação dos instrumentos internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos, sendo extremamente rara, no mundo de hoje, qualquer situação de agressão sistemática dos direitos humanos que fique sem denúncia e não desperte reações que vão muito além dos limites territoriais dos Estados. A prisão do ex-ditador Pinhochet na Inglaterra e o processo contra o ditador iugoslavo Milosevic são demonstrações concretas desse avanço. O espaço dos ditadores já diminuiu muito no mundo, o que é um sinal evidente de avanço do direito.
    As violências cometidas atualmente pelos Estados Unidos contra o Afeganistão parecem demonstrar o contrário, pois sem qualquer respeito pela soberania e pelos tratados vigentes, populações civis estão sendo dizimadas, num ato de vingança irracional e antijurídico, sem que se caracterize o exercício do direito de defesa ou mesmo a eventual punição de um culpado. Entretanto, apesar da censura e da interferência de fatores não esclarecidos que influem sobre muitos órgãos de comunicação de massa, muitos fatos já deixaram perceber que os povos do mundo não estão de acordo com aquelas ações antijurídicas e desumanas, claramente ofensivas dos direitos humanos. O que ocorreu na Alemanha foi muito expressivo, pois o Chanceler manifestava apoio incondicional aos Estados Unidos, membros de seu próprio Gabinete declararam publicamente sua discordância. Ninguém está de acordo com o terrorismo, que é expressão máxima da violência irracional, mas já houve a percepção de que a não ser pelos meios jurídicos as ações e reações contra a violência somente poderão gerar mais violência e não são o caminho para a paz.
  5. No âmbito interno dos Estados também estão acontecendo transformações de extraordinária importância. Um dos fatos mais significativos do nosso tempo, e que certamente irá influir decisivamente sobre a reformulação das relações de poder e, paralelamente, sobre a organização da sociedade e a convivência humana, é a mobilização de grupos sociais organizados. A inoperância ou incompetência dos meios tradicionais de expressão da vontade do povo, ou do exercício do governo em seu nome, vem estimulando a multiplicação, o crescimento e a intensificação das ações das organizações sociais. Sob influencia desse importante fatos, das reivindicações e exigências que elas colocam, novas concepções e novos modos de atuação na ordem pública vão sendo definidos.
    Assim, por exemplo, já não se pode sustentar a existência de uma separação nítida entre os setores público e privado, pois há o reconhecimento de que ambos expressam interesses que se interpenetram. Isso tem reflexo imediato no mundo do direito, pois já não é possível falar-se em direito público e direito privado, como compartimentos estanques. Ao lado disso, não há mais condições para que se pretenda manter o Estado como instrumento de classes privilegiadas, tendo a função precípua de manter a ordem estabelecida, por mais injusta que ela seja. Assim, também, e pelas mesmas razões, não há como sustentar-se a pretensão ao Estado mínimo, com funções limitadas à vigilância e à repressão, como o État gendarme idealizado por alguns teóricos do início do século dezenove. Isso não significa a volta à idolatria do Estado nem a estatização de toda a vida social, mas expressa a exigência de que o Estado participe ativamente da correção das injustiças sociais e da garantia dos direitos para todos, como verdadeiros direitos e não como privilégios de alguns.
    Um sinal expressivo dessas inovações é a concepção de “políticas públicas”, que representa, essencialmente, a exigência de que o Estado desempenhe um papel positivo, bens e serviços essenciais a todo o povo. E noções como “eficiência”, que até há pouco faziam parte exclusivamente do universo dos empreendimentos privados já integram hoje a linguagem da instrumentos normativos das ações públicas e ocupam espaço considerável nas produções teóricas de ramos tradicionais do Direito Público.
    Outro sinal dessas inovações, mas que demonstra, ao mesmo tempo, a existência de perplexidades e de certo desnorteamento na adoção de novos instrumentos, é o recente aparecimento das “agências reguladoras” na organização pública brasileira. Inspiradas na proposta neoliberal de privatização das atividades do Estado, essas agencias, criadas sob a forma de autarquias especiais, são relativamente autônomas e, para regular atividades privatizadas, passaram a fixar normas que concorrem com a lei ou o decreto, instrumentos normativos que a Constituição atribui, respectivamente, ao Poder Legislativo e ao chefe do Executivo. E essa regulação, mal definida e cheia de improvisos, vem dando margem a uma forte intervenção nas atividades situadas no âmbito de cada agência, criando-se a imagem de um governo não representativo e fortemente intervencionista, com muitas cabeças, que age segundo as circunstâncias, afetando gravemente, muitas vezes prejudicando, os interesses do povo.
  6. Tudo isso é revelador de que estão ocorrendo profundas transformações na ordem política e social, exigindo que os juristas estejam atentos às novas realidades e procurem reformular sua conceituação tradicional, aperfeiçoando o que for necessário e possível aperfeiçoar, substituindo o que já não for conveniente ou praticável e criando o que for exigido pelas inovações da realidade social. Existe a necessidade de um novo direito para uma nova realidade e é fundamental fixar alguns parâmetros.
    Em primeiro lugar, o direito deverá ser concebido como necessidade essencial da pessoa humana, para que os seres humanos preservem sua dignidade e satisfaçam as exigências de sua natureza física e espiritual. Assim sendo, o direito autentico não pode ser confundido com a criação arbitrária de regras de convivência, impostas por alguns à obediência de todos ou de uma parte do povo. Sendo resultado de uma seleção de valores, praticado pela experiência reiterada, o direito autêntico terá, necessariamente, um conteúdo ético. É indispensável a criação de instrumentos para a fixação de regras de convivência, para possibilitar a existência harmônica de interesses divergentes, mas para autenticidade do direito e legitimidade das regras é necessário que o povo tenha participação efetiva na criação e aplicação do direito, influindo sobre todos os que tiverem a incumbência de fixar ou aplicar as regras, ou de solucionar conflitos sobre sua inteligência e aplicação. Estes, por sua vez, devem sempre estar atentos à realidade social, para colherem nela os elementos para suas decisões.
    Na realidade do século vinte e um o Estado é necessário, para dar eficácia ao direito e para agir visando assegurar a todos o efetivo acesso aos direitos consagrados na Constituição. O Estado não se confunde com a sociedade mas é integrante dela e deve ser concebido como um instrumento do povo e não seu inimigo ou concorrente. Por isso é necessário que em sua organização esteja assegurada a penetração, permanente e efetiva, a vontade do povo, em sua totalidade ou segmentos expressivos, embora devam ser escolhidos representantes para a execução de tarefas específicas. Os órgãos de representação não deverão ser concebidos como substitutos do povo nem os representantes deverão gozar de privilégios, como categorias sociais privilegiadas instrumentos já concebidos, como audiências públicas, conselhos conferências, deverão ter atividade permanente, atuando ao lado de associações e outras entidades criadas por segmentos da população, os quais deverão ser aperfeiçoados e desenvolvidos, como instrumentos autênticos de expressão da vontade e dos interesses do povo. Assim, as instituições autênticos de expressão de vontade e dos interesses do povo. Assim, as instituições públicas ora existentes, concebidas e organizadas segundo a realidade do final do século dezoito, deverão ser ajustadas às novas realidades, para que tenham legitimidade e eficácia.
    Por último, é importante assinalar que já se vai definindo um novo conceito de Constituição, adequado à realidade do século vinte e um. Esse conceito não é uma criação repentina, que ignora ou anula todos os antecedentes. Longe disso, o que se tem é uma evolução, que retorna as idéias básicas de fixação e garantia de direitos fundamentais e de governo limitado pelo direito. Corrigida a distorção estabelecida no século dezenove, que reduza a Constituição à categoria de simples manifesto político consagrada a noção de Constituição como lei superior, resultante de longa evolução teórica e reconhecida a Constituição como expressão formal, dotada de plena eficácia jurídica, dos princípios e dos direitos fundamentais de pessoa humana, o dever de todo jurista será respeitá-la, defendê-la e trabalhar para que ela seja posta em prática, com o máximo empenho possível, todos os direitos nela consagrados e, além disso, promover a responsabilização de todos os que atentarem contra ela ou criarem obstáculos à sua efetivação.
  7. Assim concluo minha última aula formal, como integrante do quadro de professores efetivos desta escola. O que posso dizer, além de tudo o que foi exposto, é que minhas lições nunca foram um exercício de retórica ou, simplesmente, a transmissão de proposições teóricas, sem compromisso com a prática. Parafraseando a severa advertência do Padre Vieira, nunca admiti ser daqueles pregadores que pregam apenas para os ouvidos e não para os olhos, pois o que tenho sido e vivido mostra que tudo aquilo em que eu disse acreditar, o direito, a justiça, a liberdade, a dignidade humana, tem sido honrado em minha prática. Isso é o que deixo como mensagem aos alunos de amanhã: viver com dignidade, jamais colaborar para a prática ou o acobertamento de injustiças, nunca dar prioridade à busca de riqueza, de poder, de honrarias ou de prestígio social, sacrificando para isso princípios ou valores fundamentais, ter a preocupação permanente com a justiça e buscá-la sempre através do direito, jamais fazendo concessões ao arbítrio, à vaidade ou aos interesses e caprichos dos poderosos do dia. Se forem fiéis a esses preceitos poderão amealhar riquezas nem gozar a satisfação efêmera das glórias passageiras, mas ao final de suas vidas terão a paz de consciência e poderão ceder seus lugares aos que vierem em seguida, com a seriedade de quem deu o melhor de si em benefício da humanidade.