“POST SCRIPTUM”
Vamos falar de ideias. As ideias buscam não sô as mentes, mas o coração dos homens. É aí que estendem suas raízes, tornam-se patrimônio comum. Diante de um argumento correto, um homem simples da rua, ao concordar, traduz seu assentimento na expressão: “isto é lógico”, embora jamais tenha lido Aristóteles e talvez nunca venha a saber que a lógica é apenas um método de organização de ideias.
Agora, recordando a lição do Professor Goffredo mestre incomparável da lógica – assim como o Direito nasce no coração dos homens, pensamos que o coração é o destino sublime das ideias.
A ideia de justiça não se esgota na construção dos sistemas jurídicos. Em primeiro lugar, é à injustiça que somos sensíveis. Diante de uma situação injusta, qualquer homem do povo dirá: “isto é injusto”, pois o senso do injusto não só é mais agudo como mais perspicaz do que aquele do justo. Já que a justiça, com mais frequência, é o que escasseia e a injustiça o que reina, as pessoas têm uma visão mais dará do que falta às relações humanas do que aquilo que lhes sobeja. Assim, o senso da justiça é iminente ao ser humano, não pertence apenas aos bacharéis em Direito.
A Faculdade de Direito de São Paulo tem sido o melhor cenário do Brasil para a circulação de ideias. A partir de 11 de agosto de 1827, este Páteo foi o abrigo seguro das ideias mais generosas, especialmente as de Justiça e Liberdade, de Democracia e de Ética.
Aqui, as ideias de Abolição c de República encontraram terreno fértil em nosso jardim de pedra, verdade, porém, que nunca houve ideia unânime no Largo de São Francisco; este é um espaço plural. Durante muito tempo, no século XIX, abolicionistas e republicanos foram considerados subversivos. No século XX, também foram subversivos os que sonharam com a Liberdade e com a Constituição.
Hoje, contudo, trataremos sobretudo de ideias. Falemos aos jovens que, a exemplo de todas as gerações ancestrais, estão formando seu espírito e inaugurando seu aprendizado de cidadania como estudantes de Direito, em todas as Escolas do Brasil.
Portanto, uma primeira palavra será a respeito do nosso locus. A ideia de Universidade repousa em um tripé: professores, alunos e antigos alunos. Como todos sabem, a Academia do Largo de São Francisco não tem porta de saída, Não temos ex-alunos; uma vez aluno, aluno para sempre, À Associação dos Antigos Alunos é o elo entre o passado e o futuro, tem vínculo indissolúvel com este chão, com a Faculdade de Direito e com o Centro Acadêmico XI de Agosto. Não é apolítica; é apartidária.
Subscreve todas as iniciativas em benefício de nossa grande comunidade. Zela pela manutenção da qualidade do ensino. Preserva os valores universitários. Guarda compromisso com a Justiça e com a Liberdade, com a Ética e com a Democracia. É disso que falaremos, em nome dos vivos e dos mortos.
Mais vale não saber nada a ter a cabeça cheia de ideias fixas. Aqui, entretanto, não cuidaremos de ideias novas; só de novos sentimentos.
Celebramos hoje um século de nascimento do Professor Goffredo da Silva Telles Junior, querido paraninfo da nossa turma de 1964, filho muito amado das Arcadas.
Celebraremos também – como haverá de fazer, em exatos trinta dias, todo o mundo civilizado – os oito séculos da Magna Carta, de 1215, documento inaugural da bibliografia dos Direitos Humanos, pedra fundamental do constitucionalismo. Alguém dirá que é uma simples coincidência.
Na noite de 8 de agosto de 1977, enquanto o mundo oficial festejava a portas fechadas os 150 anos da instalação dos Cursos Jurídicos no País, as almas livres se reuniam no Páteo das Arcadas para a leitura da “Carta aos Brasileiros”, marco histórico da resistência democrática no Brasil, grito ambivalente de esperança c desafio, travado havia muito tempo em nossas gargantas.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 21, 1) está escrito que “a vontade do povo será base da autoridade dos governos”. Na sua matriz, na Magna Charta Libertatum, encontraremos o núcleo teleológico das constituições, cuja finalidade essencial é uma só: limitar o poder.
Afirmamos, portanto, que a Constituição é um instrumento jurídico destinado a limitar o poder político.
Nos Estados de Direito Democráticos, as constituições estabelecem as regras que prescrevem por quais mecanismos o poder do povo é delegado aos seus governantes, No Brasil, mesmo em nossa república intermitente, todos os textos constitucionais proclamaram que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Ademais, todos agasalharam a teoria da separação de poderes, em sua concepção tripartida, cláusula pétrea, cerne fixo da Lei Maior, insuscetível de emendas, atalhos ou desvios.
Na democracia plena, o poder não deriva da força, não é produto de conquista, seja por revoluções ou golpes, mas resulta de eleições, livres, gerais, diretas, periódicas, acessíveis a todos os que estão investidos de cidadania.
Ensinava o Professor Goffredo que “a lei e a fórmula; da ordem”. Por isso, assim como a lei limita o comportamento de cada cidadão, a Constituição limita o poder do Estado. Aprendemos que à Constituição é a fórmula do poder, o estatuto do governo, sabemos que as regras estabelecidas na Constituição para a administração pública, que tratam do acesso, do exercício e da manutenção e do poder, não podem ser objeto de contingenciamento. A Constituição Federal não admite interpretação seletiva. Aqui não existem duas constituições: a nossa e a deles.
Sublinhava o Professor Goffredo que “há uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima”. Sustentamos que o poder político legítimo haverá de ser exercido de forma legítima. Proclamamos que os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência são compulsórios para os agentes públicos investidos na União, nos Estados e nos Municípios; no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Declaramos que no sistema republicano de separação de poderes um deles não reforma os outros e acreditamos que os controles recíprocos haverão de ser manejados conhecido modelo de freios e de contrapesos. Reiteramos que um dos métodos previstos na Constituição para permitir a transferência do poder do povo aos seus mandatários transitórios é a eleição. A Constituição também prescreve por quais processos o poder pode ser retirado dos agentes públicos, que estão sujeitos a responder por crimes comuns e crimes de responsabilidade, com ritos estabelecidos em lei.
A inércia, a inépcia, a arrogância, a antipatia, não são delitos. Mesmo a incompetência, por mais perversos que sejam os números, não é crime. Da tipologia do Código Penal também não consta o “malfeito”. Malfeito é derrubar café no tapete. Todavia, em qualquer dicionário de respeito, a palavra malfeitor é sinônima de delinquente, de criminoso.
São malfeitores os que cometem delitos de corrupção – ativa e passiva — de peculato, de concussão, de prevaricação, de improbidade administrativa, de irresponsabilidade fiscal, de tráfico de influência. São delinquentes os governantes, parlamentares ou magistrados, que se transformam em receptadores do assalto ao Erário.
Estão igualmente sujeitos a processo por crime de responsabilidade os agentes públicos, servidores da Nação, por mais altas que sejam as suas funções, que atentem contra a probidade da administração, a existência da União e o livre exercício de seus poderes.
Nós chamamos de criminosos os agentes públicos venais, já definidos no Supremo Tribunal Federal como “marginais do poder”: Para esses apátridas da Nação, os padrões de solidariedade internacional do Brasil ficam subordinados a suspeitíssimos interesses econômicos e a soberania, posta no artigo primeiro da Constituição como fundamento da República, nada significa. Não lhes importa que a soberania seja indispensável para a consecução dos objetivos que o artigo terceiro elenca, para os princípios que o artigo quarto define, para os direitos que o artigo quinto consagra.
O governo que larga a soberania no balcão de negócios partidários e a barganha pela moeda vil da corretagem corrupta, age contra o povo, contra a Nação, contra a Pátria.
Assim como a ditadura militar deixou gravado na História do Brasil o ferrete da repressão, com a censura e “a tortura servindo como instrumentos contra a liberdade, os tempos presentes haverão de testemunhar que os últimos condomínios de poder investidos no País levarão em seus prontuários o carimbo da corrupção – a miúda e a graúda – ambas utilizadas de modo constante, corriqueiro, quase casual, como ferramentas de dominação.
Esse crime continuado, contra a Constituição, contra as leis, contra a História do Brasil, contra o passado e contra o futuro do povo brasileiro, tem que parar. Há de parar.
O Brasil não pode ser hipotecado à corrupção. O povo brasileiro não aceita a complacência, não merece o estigma de legatário da herança maldita das felonias e mentiras de seus governos.
A corrupção é um flagelo ético. Não foi por outra razão que, trinta anos depois da “Carta aos Brasileiros”, em oração aos calouros, o Professor Goffredo proclamou um libelo: “não é de estranhar que em épocas corruptas, de ‘mensalões’, ‘sanguessugas’ et coetena, os setores normais da população vivam a clamar por ética na política, (…) O bacharel corrupto é traidor da disciplina da convivência, traidor da ordem social de que precisa ser sentinela e guardião”.
Não foi coincidência. Algum dia, no futuro, quando se olhar para trás, quando se examinar o arquivo morto correspondente à atual fase de nossa história, será encontrado o atestado de óbito de instituições atacadas por moléstia de lenta evolução, com metástases avançadas tomando conta dos organismos do País, alastrando-se impiedosamente nos estados e municípios, nas empresas públicas « nas autarquias, nos entes da administração pública e na vida privada. A certidão será lavrada com a estampilha maldita da corrupção.
Para lembrar apenas o conhecido episódio de Ruy, estarrecido diante da vitória das nulidades, ou o célebre sermão do Padre Vieira, na conjugação do verbo rapio, tudo o que já se disse no Brasil, em todas as épocas, acerca da roubalheira despudorada, da gatunagem institucionalizada, dos sobrepreços criminosos, das comissões aviltantes, da bandalheira recompensada, da ignorância orgulhosa, da impune confusão entre a res pública e a cosa nostra, não passa de pálida imagem de aquarela ante as tintas sombrias dos delitos que se sucedem, como pragas bíblicas.
Até poucos dias parecia que não indignavam mais ninguém, revelando, na moldura da história recente, um quadro de anestesia geral, pois o escândalo de cada semana tornava perempto o da semana passada e assim imaginávamos que seria na próxima semana.
A afronta a elementares princípios éticos não pode se tornar banal no Brasil. Ontem, era imperativo lutar por liberdade. Hoje, pela decência. Era preciso um gesto seminal de esperança, que chegasse para dar impulso a uma tarefa nacional e pedagógica de compostura, de limpeza. Não veio dos políticos, ou de seus partidos. Nem da Universidade. Veio de onde menos se esperava, do povo, consciente de que já não lhe bastam pão e circo. O povo por enquanto, pode não saber bem o que quer; mas bem sabe o que não quer.
Não faz muito tempo, a pretexto da realização da Copa do Mundo, foram ignorados todos os mandamentos do artigo 37 da Constituição Federal, imperativos para a administração pública. Aliados ao que existe de mais repulsivo na esfera privada, União, Estados Municípios esmeraram-se na malfeitoria. No passado, na fase do regime militar, nunca faltou ao povo sabedoria para substituir os pomposos nomes das obras tocadas ao ritmo do falso milagre brasileiro, O povo batizou de minhocão o feio e inútil adorno, que polui a paisagem urbana, concebido à imagem e semelhança de seu criador. Agora, o que os áulicos do poder pretendiam chamar de arena, o povo acunhou de itaquerão, e pegou. Nenhuma coincidência.
E assim seguimos, com o mensalão, com o petróleo como pedalão e com o que mais vier, com os aumentativos na dimensão exata dos rombos em cascata, com a notável exceção da política externa, outrora apanágio do Itamaraty, depois qualificada como nanica. Será coincidência?
Aqueles que não conhecem a história estão condenados a repeti-la. Que Nação o povo brasileiro quer projetar para o futuro? Vamos recordar o que ocorreu ontem para que não se repita amanhã.
Como diria o Professor Goffredo: “fiquemos apenas com q essencial”,
Falemos da Petrobrás:
Naqueles dias de abril de 1964, quando os primeiros ventos do outono da liberdade tingiram de cinza os nossos horizontes, no silêncio da madrugada, foi desmanchada a “torre” de ferro da Petrobrás, plantada ali no Largo de São Francisco, símbolo do nacionalismo. Durante décadas sonhamos com a pequena estrutura, imaginando que aquele ícone estivesse tombado apenas no patrimônio histórico da nossa memória e que algum dia, se a Petrobrás e outras instituições nacionais sobrevivessem ao mantra do neoliberalismo globalizante, a nossa “torre” seria reerguida, em homenagem às várias gerações universitárias do Brasil que lutaram para que a Nação pudesse ter a propriedade e a posse de suas riquezas. Sonho vão. Em outubro de 2013, faz apenas um ano e meio, o aniversário da lei jubileu de diamante da Petrobras, restou inteiramente ignorado, Hoje, revelada uma fração do escândalo que a mutilou, ninguém dirá que foi simples coincidência. Ao pregão enganoso do pré sal, segue-se o martelo da miséria do pós saque.
Voltemos ao ponto de partida:
Hoje, nesta data multicentenária, proclamamos nossa fé no aperfeiçoamento do Estado de Direito Democrático é de suas instituições, para que o poder público esteja apto a garantir a igualdade de todos perante a lei e para que esta venha a ser corolário da livre expressão da vontade da maioria do povo. Nossa esperança, de que governantes e governados sejam submetidos às mesmas regras jurídicas; de que o espaço público, aberto pela palavra e pela ação, possa reabilitar no Brasil, algum dia, a atividade política como palco de uma das grandes dimensões da dignidade humana. Nossa revolta, com a usurpação do lema da caridade de São Francisco, padroeiro desta Casa. Nossa certeza, de que o ensinamento “é dando que se recebe” não há de permanecer no Brasil como dístico de bandidos sem castigo, como tradução literal e irresponsável de gazua contra a Nação.
Daqui, do velho Páteo das Arcadas, naqueles tempos medonhos dos anos de chumbo, o Professor Goffredo leu sua “Carta aos Brasileiros”, uma proclamação desassombrada, que hoje recebe de seus alunos este post scriptum, feito em sua memória, debaixo de sua inspiração, prova da perenidade das suas aulas.
Naquela noite fria do inverno paulistano, a consciência jurídica do Brasil queria uma cousa só: “O Estado de Direito, já”
Aqui estamos em nossa alma mater, no mesmo Páteo, não é coincidência. Como tudo que está ao alcance da imaginação está ao alcance da possibilidade, hoje queremos mais:
Agora, exigimos decência!
Decência, já!
São Paulo, 13 de maio de 2015. *
FLAVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH
JOSÉ CARLOS DIAS
ALMINO MONTEIRO ALVARES AFFONSO
DARCY PAULILLO DOS PASSOS
JOSÉ GREGORI
CANTÍDIO SALVADOR FILARDI (in memoriam)
JOSÉ IGNÁCIO BOTELHO DE MESQUITA (in memoriam)
HAROLDO LAURO LIPPE (in memoriam)
mais outras assinaturas
OS TAMBORES DOS FILHOTES
A Faculdade de Direito do Largo São Francisco juntou-se à Associação dos Antigos Alunos, para comemorar, no último dia 15 desse mês de maio, os 100 anos do nascimento do professor Goffredo da Silva Telles, paraninfo da Turma de 1964. No Salão Nobre, José Carlos Dias apresentou a gênese da Carta aos Brasileiros, que delimitou um antes e um depois, na luta histórica da redemocratização do país. No pátio, Flávio Bierrenbach, fez um post scriptum da memorável Carta, assumindo, no ritmo da frase e na beleza do texto, a consciência suave, amorável, determinada c gigantesca do grande Mestre. Juca de Oliveira leu da tribuna a Carta inesquecível.
Tanto no Salão Nobre, como no pátio, definido pelo Mestre, como Jardim de Pedras, aconteceu o inesperado. Uma série de tambores ruidosos e de gritos de quem se dizia professores, afrontou o ambiente da homenagem, supondo que ali estaria o Governador do Estado, ou seu representante, alvo de protestos da classe em greve. Os ditos professores nem sabiam o porquê daquela reunião festiva, estreitados na bitola do rancor contra o governo.
Essa atitude coletiva de alienação pura leva-nos, naturalmente, a pensar no aprendizado dessa geração de estudantes, dominada por tambores e gritos, e não por palavras que constituiriam a arma apropriada daquele local histórico, sempre solidário com as vítimas de qualquer tipo de injustiça.
Terminado todo ruído e cada discurso, alguns manifestantes despertos se dignaram a pedir desculpas. Mas a solenidade findara-se, deixando congelado o espetáculo
do absurdo, no qual professores da rede pública não souberam usar da força da palavra, para lançar sua mensagem, até mesmo quando lhes foi oferecida à Tribuna Livre das Arcadas, que sempre, sempre, ressoou liberdade e justiça.
Se ontem os tambores eram da ditadura banida, viram-se, ali, no Jardim de Pedras, os tambores de seus filhotes, que nem sabem o que são, de verdade. Até hoje.
A sorte desses professores é que a figura do Mestre Goffredo, com sua palavra sábia, ética, poética, veraz na sua prosa corajosa, construída de síntese em síntese, paira acima de nós, como um sol de verão, querendo derreter a ignorância, indiferente às almas malsãs e às maldades do mundo.
Pode-se até dizer que acontece assim uma espécie de milagre, pois, é o morto que ensina os vivos.
FERES SABINO.