Por Carlos Roberto Chueiri

Quando cheguei para assistir à solenidade, marcada para as 18 horas do dia de 28 de novembro, as luzes do majestoso Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP eram tênue. Alguns convidados já estavam acomodados nas cadeiras que, como muitas outras, seriam ocupadas pelos interessados em participar do festivo evento. Sentei-me ao lado de um senhor de alguma idade. Ele estava elegantemente vestido, aparentando gosto esmerado, óculos modernos e, na cabeça, ostentava um daqueles casquetes coloridos, aparentemente artesanais, que indicam a origem africana do usuário. Trocamos um aceno, quando nossos olhares se cruzaram. Percebi que lia atentamente o que seriam apontamentos manuscritos, feitos em um caderno tipo escolar. Nas mãos, um livro que aparentava ser de alguma edição antiga, desgastada, cujo título parecia ter sido apagado pelo tempo. Entretanto, na parte superior, era possível se ler “LUIZ GAMA”.
Lembrei-me de um livro de sátiras, em versos muito curiosos, que li ainda no meu tempo de estudante do colegial. Os versos seriam do mesmo autor.
O livro, na sua edição antiga, fora escrito por aquele que logo mais seria homenageado: Luiz Gama, um afrodescendente (como está na moda definir) como foi Machado de Assis ou Leônidas da Silva, o “Diamante Negro” do futebol brasileiro.
Luiz Gama é o rábula da Abolição, o poeta crítico da sociedade do fim do Império. Sinceramente, só voltei a me interessar pelo assunto – e pela personagem – naqueles últimos dias que antecederam a solenidade programada.
Perguntei ao meu vizinho de assento como via aquele “quase” aluno oficial da Academia de Direito, com menos de trinta anos desde a sua implantação na capital de Piratininga, nos idos de 1800. Disse-lhe que, como jornalista, estava muito interessado pelo que ia ouvir, visto que a figura de Luiz Gama era algo difusa, no meu referencial.
Nos quinze minutos seguintes escutei uma aula de cidadania que o ídolo daquele desconhecido, sobretudo, erudito, havia legado à posteridade. Agradeci. Gostaria de continuar, mas o locutor já se aproximava do microfone e eu deveria me sentar na primeira fila para cumprir a minha missão. Disse-lhe que gostaria de continuar a conversa. Respondeu-me que estava às ordens. Ele estudava Luiz Gama havia vinte anos. E afirmou:
“Prepare-se para assistir ao resgate da dignidade de um brasileiro que nasceu na senzala e se transformou, com seus próprios esforços, em um herói. Posso lhe assegurar que, para mim, tudo que for dito sobre ele ainda será pouco. Apesar de respeitar o sacro local desta homenagem, feita quando se assinalam os 125 anos da sua morte, Luiz Gama é uma figura que a História do negro no Brasil precisa recontar eternamente”.

UMA HOMENAGEM SIMPLES, MAS PROFUNDAMENTE

HUMANA E TOCANTE
A homenagem anunciava uma conferência: “O SISTEMA DE JUSTIÇA E O COMBATE AO RACISMO INSTITUCIONAL”, que seria dividida em três exposições desenvolvidas por Sueli Carneiro, Hélio Santos e o Antigo Aluno, embaixador Celso Lafer.

A organização do encontro teve a chancela de entidades como a Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (representada, na ocasião do evento, por S. Excia. Secretário Dr. Luiz Antonio Guimarães Marrey), a Faculdade de Direito da USP (representada no ato pelo seu Diretor, Dr. João Grandino Rodas) e a Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP (representada no evento pelo seu presidente, Dr. José Carlos Madia de Souza).
As solenidades também foram apoiadas pela Grande Loja Maçônica do Estado de São Paulo, por meio do seu sereníssimo Grão Mestre, o também Antigo Aluno e desembargador Pedro Gagliardi (turma de 1965).
A mesa para os trabalhos iniciais estava composta pelas seguintes autoridades: Dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente, professora doutora de Teoria do Estado de nossa Faculdade e diretora da Escola Superior de Advocacia; Dr. Ricardo Dias Leme, Secretário Municipal de Negócios Jurídicos, representando S. Excia. o Prefeito Municipal da Cidade de São Paulo, Dr. Gilberto Kassab; Dr. José Renato Nalini, presidente da Academia Paulista de Letras; Dr. Marco Antonio Zito Alvarenga, presidente da Comissão do Negro e Assuntos Anti-discriminatórios da OAB/SP e representante do seu presidente; além dos já citados Luiz Antonio Guimarães Marrey e João Grandino Rodas.
Atentos, os presentes foram “tocados” pelo som a capella do coral do Clube Espéria, interpretando o Hino Nacional. O ambiente tornou-se solene e evocativo. Em seguida, alguns notáveis se fizeram ouvir em candentes palavras sobre o abolicionista e poeta Luiz Gama, que estava sendo resgatado naquela noite, em plena semana em que se comemorava, em sucessivos e marcantes eventos, a importância da etnia negra na formação histórica da nossa nação. Devido a problemas de espaço, inerentes às limitações técnicas de produção de “Folha Dobrada”, optamos por registrar apenas algumas frases sobre o tema sugerido para a conferência levada a efeito, assim como os seus respectivos autores. Desta forma, de maneira multifacetada, está apresentada a personalidade daquele que, por opção e enquanto pôde resistir, procurou acumular conhecimento e sabedoria para entender e defender seus irmãos étnicos da mais degradante das condições: a da escravidão. Uma rara lição de apego à dignidade que se estende por mais de 150 anos, que, para orgulho das Arcadas, teve dos seus mestres as respostas que tanto Luiz Gama ansiava. Para o seu nobre mister.
Cerca de duas horas depois do meu encontro com aquele senhor, cuja ascendência virou moda chamar de afro-brasileira, e que havia revelado notáveis sinais de inequívoca cultura e sabedoria, tinha suas argumentações reforçadas por quase uma dezena de oradores. Como ele, os palestrantes demonstraram conhecer profundamente o que defendiam. Entretanto, guardarei para sempre os quinze minutos da lição inesquecível que recebi de um generoso desconhecido.
Tanto sobre o homenageado Luiz Gama como sobre o que todos nós estamos tentando superar: as desigualdades sociais, os preconceitos e as decorrências desses fenômenos na cor, no credo e no sexo das pessoas. Seja no convívio entre elas, seja no desenvolvimento das sociedades humanas. Estejam tais grupamentos pessoais onde eles estiverem.
Antes de iniciar a apresentação dos três conferencistas da noite, no palco do Salão Nobre, tendo como integrante de um “petit comité” um tataraneto de Luiz Gama, foi feito o descerramento do quadro pintado em óleo sobre tela da figura marcante de Luiz Gama. A obra de arte, de expressiva beleza plástica, deverá ser entronizada em uma das salas que compõem a área da Diretoria do Prédio Histórico. Desta maneira, de uma forma conceitual, a figura de Luiz Gama passa a ser imortalizada junto com outros notáveis que fizeram a história do estudo e do ensino do Direito em nossa terra.

FRASES QUE MARCARAM A HOMENAGEM FEITA PARA LUIZ GAMA, O POETA E O RÁBULA DA ABOLIÇÃO

Dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente (Professora e Diretora da Escola Superior de Advocacia)
“Hoje começa a ser notada e distinguida a importância da contribuição da comunidade afro-brasileira em todos os setores da sociedade brasileira”.
“Diante de problemas que, muitas vezes, se interpõem à integração (do negro), é fundamental que seja este momento um momento de reflexão”.
Dr. Marco Antonio Zito Alvarenga (Presidente da Comissão do Negro e Assuntos Anti-discriminatórios da OAB/SP)
“A OAB entende a integração como sendo um fenômeno fundamental”.
“150 anos depois da sua morte, a luta de Luiz Gama ainda não acabou”.
“É fundamental, é importante para a sociedade (brasileira) que se cristalize a verdadeira e definitiva integração do negro na sociedade “.
Acadêmico Dr. José Renato Nalini (Presidente da Academia Paulista de Letras)
“Luiz Gama já integra nossa Academia (Paulista de Letras) como patrono da sua cadeira de número 15”.
“Luiz Gama foi o ‘Sonhador da Abolição’”.
”A abolição da escravatura não eliminou o trabalho escravo, que ainda vemos sendo praticado de diferentes maneiras em nosso país. E o preconceito social ainda está presente em inúmeras atitudes que a sociedade (brasileira) moderna vive”.
“Para encerrar, o olhar crítico do poeta: ‘O QUE ESTOU VENDO/ VOU DESCREVENDO’”
Prof. Dr. João Grandino Rodas (Diretor da Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco)
“A figura de Luiz Gama, eternizada em um óleo que o colocará entre os notáveis desta Faculdade, é uma demonstração do respeito que lhe devotamos, bem como significa o resgate da cidadania de um brasileiro igualmente notável. Tanto como intelectual como o defensor infatigável dos desvalidos”.
“Me permito comparar a figura de Luiz Gama com dois outros descendentes de africanos, aos quais dedico minha integral admiração e respeito. O meu mestre Cesarino Jr., um disciplinador assumido, que encarou a justiça do trabalho como um dever de vida. O outro, um americano, meu preceptor na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, de nome Clyde Ferguson. Ele foi um dos que mais lutaram pelos Direitos Humanos nos anos violentos de 60, quando os Estados Unidos enfrentaram grandes dificuldades para a integração étnica dos seus cidadãos. Clyde, como Gama, ensinava que “nunca devemos abaixar as nossas cabeças, diante dos sagrados direitos que todos devem respeitar”.
Dr. Luiz Antonio Guimarães Marrey (Secretário de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo)
“A homenagem a Luiz Gama significa:
reconhecer a luta contra a opressão;
reconhecer aquele que lutou contra todos, tendo nascido do nada;
reconhecer (em Luiz Gama) o precursor do tema do “Ativismo dos Direitos Humanos”.
“(Esta) homenagem promove uma separação histórica: eterniza a presença de Luiz Gama e o torna o símbolo de uma raça na sua (perene) luta contra a desigualdade. Portanto, viva a luta de Luiz Gama!”.
Dra. Sueli Carneiro (Doutora em Filosofia da Educação pela USP e Diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra)
“A ressurreição da justiça social partiu das atitudes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo”.
“Não existe, na prática, uma efetiva política de inclusão social até os dias de hoje, em nosso país”.
“Brancura é o passaporte para as melhores oportunidades na sociedade brasileira, tanto no trabalho como na sociedade propriamente dita”.

Prof. Hélio Santos (Presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade – IBD)
“Luiz Gama lutou pelo direito de ter direito”.
Citando o ex-presidente FHC: “O Brasil não é um país subdesenvolvido, mas um país injusto”.
“A injustiça social constitui um óbice para o desenvolvimento”.
“O Brasil cresceu com a contribuição da força da corrente imigratória que recebeu, inclusive a da migração forçada dos negros oriundos da África”.
Embaixador Prof. Dr. Celso Lafer (Professor titular da Faculdade de Direito da USP, abordando o tema: “O papel do Estado e da Sociedade Civil na promoção da Justiça Social”).
(Posicionar) “Os direitos humanos como um valor – o valor do ser humano – independentemente do seu invólucro.”
“Afirmação dos direitos humanos – é fruto da modernidade – dá ideia de que o ser humano, na sua dignidade própria, não se dilui no todo social”. Citando Kant:
“O ser humano não tem preço, tem dignidade”.
Sobre a anti-discriminação, citando Bobbio, ao falar da função promocional do Direito: “não é o de apenas proibir, ou permitir, mas o de estimular (a promoção das ações de Direito)
“O ponto de partida da elaboração histórica dos direitos humanos é o princípio republicano da igualdade e, o seu corolário lógico, o princípio da não discriminação”.
“A sessão de hoje é um ato pedagógico. A inauguração de retrato de Luiz Gama (no Prédio Histórico) é a expressão de uma política de reconhecimento da importância da luta contra o racismo institucional que ele enfrentou e que é um dos dados da nossa realidade (até hoje)”.