“Nois faiz ôtra veiz”

IVO SHIZUO SOMMA, Tuma 1961 conta de suas lembranças dos tempos do Largo de São Francisco e, do “colega” “Adoniran Barbosa”, orgulho de São Paulo, do Brasil, presença constante nas Arcadas.
“Nois faiz ôtra veiz”

Por IVO SHIZUO SOOMA
Especial para a coluna ITALO

Premiou-se a Vida com a oportunidade de conhecer personalidades marcantes por seu talento e originalidade. Entre elas, Adoniran Barbosa, pseudônimo pelo qual era conhecido João Rubinato, artista de rádio, cinema, teatro e televisão, sambista-autor, entre outras criações, de “Saudosa Maloca”, “Trem das Onze”, “Samba de Arnesto”.
Personalidade boêmia, andarilho das noites paulistanas, encontrava-o com freqüência no bar em frente à Faculdade de Direito do Largo São Francisco, conhecida por Academia do Largo de São Francisco, consumindo umas cachaças. Gostava ele de “bater caixas” com estudantes. Uma época em que espacei minhas incursões ao “boteco da frente” da Faculdade, ao encontrar-me com os amigos em uma das ocasiões em que pude a ele voltar, fui comunicado de uma tarefa que me atribuíram sem prévia consulta.
Tendo Adoniran manifestado a eles vontade de produzir uma “musiquinha” sobre a nossa Academia, em parceria com um estudante, e como tinha eu o costume de fazer paródia de músicas adaptadas ao meio acadêmico, levaram a mim essa incumbência, mesmo porque, demandava ele razoável disposição para acompanhar um bom apreciador da cachaça.
No primeiro encontro que tive com Adoniran, falando sobre a tal produção, disse a ele: “Será que fica boa?”
Respondeu-me “Nóis fáiz. Si num ficá bom, nóis fáiz ôtra veiz. Si mesmo assim nunca ficá bom, nois fáiz di novo. Nóis fáiz até fica bom”.
O resultado é que tomamos muita cachaça juntos, trocamos muitas idéias, mas a parceria mesma não saiu.
Mas uma recordação, que é na verdade uma lição e um exemplo, me ficou e me acompanha: o amor pela obra bem feita, a persistência sem esmorecimento.
E também o respeito pelo que foi feito, mas precisou ser aperfeiçoado, a consciência de que a produção seguinte não existiria se não houvesse a produção anterior.
Com freqüência ocorre-me de, depois de elaborar uma peça para uso em processo, ao final dela, vir-me a insatisfação, a sensação de poder conseguir algo melhor, de não ter dado tudo de mim.
Vem-me então a tentação da preguiça, mas aí, cotuca-me lá no fundo uma voz rouquenha: “Si num ficá bom, nóis fáiz ôtra vêiz. Si ainda num ficá bom nóis fáiz di novo. Nóis fáiz até ficá bom”.
Vez por outra, acontece também de minha maquininha de escrever, não tão moderna como os computadores, mas dotada de editor de texto, apagar, sem qualquer comando, páginas inteiras que estavam em sua memória. Nessas ocasiões, parece-me que vejo o velho Adoniran, com seu chapeuzinho de aba estreita e seu paletó curto, olhando de lado com um cigarrinho no canto da boca, inspirado no fatalismo sem conformismo do nosso povo dizendo:
“Apagô purquê num tava bom. Fáiz di novo.”

IVO SHIZUO SOOMA é advogado, formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, de São Paulo, e é Cidadão Honorário de Umuarama.