Aula Inaugural do ano acadêmico de 2007

Ignácio Maria Poveda Velasco*

Excelentíssimo Sr. Prof. Titular João Grandino Rodas, DD. Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo;
Excelentíssimo Sr. Prof. Associado Sérgio Resende de Barros, Presidente da Comissão Organizadora da Semana de Recepção aos Calouros de 2007, em nome de quem saúdo todos os membros do corpo docente aqui presentes;
Sras. funcionárias, funcionários, alunas, alunos, familiares, amigos…, que nos honram com a sua presença;

Caras calouras e calouros!

A minha exposição constará de duas partes: na primeira, de caráter histórico, apresentarei um panorama – à guisa de resgate, em certos aspectos, inédito – do que foi a primeira aula inaugural na vida da nossa Academia. Na segunda, numa perspectiva jusfilosófica, tecerei algumas reflexões sobre o que poderia ser considerada uma visão humanista e universitária do Direito.
No próximo dia 11 de Agosto comemoraremos, como é do conhecimento de todos, os 180 anos da fundação dos Cursos Jurídicos no Brasil.
Por insistência do Visconde de São Leopoldo[1], paulista natural de Santos, justamente homenageado nesta Faculdade com um belo espaço, próximo a este Salão Nobre no qual nos encontramos, o Imperador D. Pedro I assinava, nesse mesmo dia do ano de 1827, Carta de Lei criando dois Cursos Jurídicos, um em São Paulo e outro em Olinda[2].

Encarregado pelo Governo Imperial de implementar na Capital paulista o Curso recém criado, o Tenente-General José Arouche de Toledo Rendon[3], decidiu, após diligentes gestões, propor a sua instalação no Convento que os franciscanos possuíam no Largo de São Francisco.
Aqui instalados desde 1647[4], os frades, reduzidos ao número de seis quando dos fatos de que ora nos ocupamos[5], habitavam um convento grande, para os padrões da época, com amplos espaços e salões.
Na descrição que o Diretor do Curso Jurídico faz ao Visconde de São Leopoldo, em Ofício datado aos 20 de novembro de 1827, o prédio contava, no andar superior, com “um salão antigo e outro sumamente grande, em paralelogramo, destinado para celas”, o primeiro servindo “sofrivelmente para uma aula”, e do segundo podendo se formar duas. Dá conta, também, da existência, nesse mesmo pavimento, de “uma boa livraria, que me parece já tem 5.000 volumes”, a qual funcionava, desde 1825, como biblioteca pública da Cidade de São Paulo[6].
Nos baixos do convento entendia ele poderem se estabelecer “4 aulas menores, formando-se duas da antiga aula dos frades, e outras duas do lugar onde está a sacristia, mudando-se esta para o lugar antigo, por detrás da capela-mor (…)”. Dessa forma, conclui, “ter-se-á acomodado o Curso Jurídico com três aulas em cima e com quatro em baixo para os estudos preparatórios”[7].
Na avaliação de Arouche Rendon, “sendo do agrado de S. Majestade Imperial”, e feitas as despesas de adaptação, que ele calculava pequenas, o Curso Jurídico poderia ter princípio no ano de 1828, desde que fossem os lentes nomeados e diligenciados os atos necessários para inscrição dos interessados e para a realização dos exames preparatórios.
Portaria do novo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, o Sr. Pedro de Araújo Lima, datada no Rio de Janeiro aos 27 de novembro de 1827, mandava o Vice-Presidente da Província de São Paulo, com base na Carta de Lei de 11 de agosto, se entender “com os Religiosos Franciscanos para se abrir a Aula do primeiro anno em uma sala que tenha dimensoens necessarias no edificio que elle occupão, e para darem as casas, que forem precisas, para o archivo, e mais serviço do mesmo estabelecimento (…)”[8].
Concluía o Ministro dando conta da expedição, nessa mesma data, de ofícios para o Tesouro, com as competentes ordens de pagamento “de todas as despesas relativas à abertura, e ao andamento do referido Curso Jurídico”[9].
Encaminhadas as providências materiais, começaram também a ser tomadas medidas outras para a implementação do Curso. Assim, em 19 de dezembro desse ano de 1827, é publicado no Rio de Janeiro Edital convocando à Diretoria de Estudos da Corte, os “pretendentes das Cadeiras de Estudos Preparatórios”, que não estivessem já providas em São Paulo e Olinda, para prestar concurso[10].
Por sua vez, o Presidente da Província de São Paulo, Thomaz Xavier Garcia de Almeida, “Official da Imperial Ordem do Cruzeiro, Desembargador da Relação da Bahia”, publicava a 24 de janeiro de 1828, outro Edital com o seguinte teor: “Faço saber, que de ordem de SUA MAGESTADE O IMPERADOR, e execução da Carta de Lei de onze de agosto de mil oitocentos e vinte sete, se há de impreterivelmente abrir em o principio de Março próximo a Aula do primeiro anno do Curso Jurídico creado n’esta Capital: todas as pessoas, que se quizerem matricular deverão concorrer até o fim do mez de Fevereiro, a fim de poderem com tempo ser examinados nos Estudos preparatórios, cujos exames Manda O Mesmo Augusto Senhor, que se principiem quinze dias pelo menos antes da abertura, das Aulas Maiores; o que para constar, e para que chegue à notícia de todos mandei lavrar o presente, que vai por mim assignado e sellado com o Sello das Armas do Império. Palácio do Governo de S. Paulo 24 de Janeiro de 1828”[11].
O Diretor do novo Curso fazia, também, a sua parte, determinando em 1º de fevereiro que “os Exames das Sciencias preparatórias para a matrícula, hão-de principiar no dia 11 do corrente mez. Os Pertendentes [sic] deverão dirigir-se ao mesmo Director para lhes assignar o dia e a hora do Exame”[12].
Para a reconstituição do ambiente da Cidade, naquelas semanas que antecederam a inauguração da nossa Academia, bem como para o resgate de fatos interessantes e importantes, que não vêm narrados em estudos tradicionais sobre a matéria, como os de Almeida Nogueira e Spencer Vampré, foi-nos de grande utilidade a consulta a O Farol Paulistano, primeiro periódico impresso de São Paulo, que circulou entre os anos de 1827 e 1833[13].
Da sua leitura ficamos sabendo da chegada, no dia 13 de fevereiro, do “lente” do 1º ano do Curso Jurídico, o Sr. José Maria de Avelar Brotero, nomeado que fora pelo Decreto de 12 de outubro de 1827, para reger a cadeira de Direito Natural[14].
É curioso o comentário que a respeito dele faz José da Costa Carvalho, redator do jornal: “Nada podemos diser acerca dos conhecimentos do Sr. Brotero, mas temos que sérão sufficientes para o desempenho dos seus difíceis deveres; e que o tempo, o estudo e a pratica de ensinar o tornarão habillisimo, pois nos consta, que tem não vulgar talento, e assim ouvimos affirmar na Universidade de Coimbra, cujo aluno foi, e foi nosso contemporâneo”[15].
Esse mesmo Costa Carvalho mostra-se entusiasmado com as perspectivas do Curso e comenta que os futuros alunos são muito bons, pois tivera oportunidade de acompanhar os exames de alguns deles, pelo que afirma sem hesitação que “nos encherão de gosto, e de esperanças”. E conclui: “A mocidade Brazileira sempre em toda parte gosou de créditos scientíficos, e a Paulistana em nada desmerece, antes pelo contrario figura bem por seus talentos, e por sua moral”[16].
No dia 15 de fevereiro, o Secretário interino do Curso, Ildefonso Xavier Ferreira, anuncia que as matrículas dos estudantes terão lugar até o último dia do mês de março[17]. Logo depois, em 26 de fevereiro, presumivelmente com os exames preparatórios já realizados, a Diretoria fixa para o dia 03 de março o início das mesmas, devendo para isso pagar uma taxa de matricula e comprovar a idade mínima de 15 anos, bem como a aprovação nos exames preparatórios, tudo nos termos do art. 8º da Carta de Lei de 11 de agosto de 1827[18].
No número 91 do jornal, correspondente à quarta-feira 27 de fevereiro de 1828, aparece estampado o seguinte anúncio:
“Pela Diretoria do Curso Jurídico se faz público que a abertura do mesmo será no dia 1º de Março pelas 4 horas da tarde”[19].
Podemos imaginar como deve ter sido grande, na pacata São Paulo daquela época, com seus aproximadamente 15 mil habitantes[20], a excitação daqueles dias e a expectativa pela inauguração. Convites foram distribuídos, arrumações de última hora levadas a termo, providências de todo tipo tomadas. E, assim, chegou o grande dia…: era um sábado.

Deixemos O Farol Paulistano nos contar:

“Dia 1º de Março de 1828! Tú abres uma nova Épocha nos annaes do Brasil! Tú vens firmar e como sellar a nossa Independencia Política! Tú rivalizas com o imortal DIA SETE DE SETEMBRO de 1822! Nem era justo que a primeira Cidade do Brasil que ouvio o grito de INDEPENDENCIA deixa-se de ser o berço das Sciencias Sociaes, destinada a acolher em seu seio a mocidade das Províncias meridionaes do Brasil, e infundir-lhes com os conhecimentos litterarios o espirito d’heroismo, que em todas as épochas tem caracterisado os seus filhos.
“Faltão-nos as expressões para expôr-mos aos nossos leitores a pompa e magnificência com que no 1º de Março se abrio o Curso-Juridico; e darmos uma idéia da enérgica e eloquentissima Oração do Sr. Dr. José Maria Brotero. – Às 4 horas da tarde, como fora determinado, concorreu immenso Pôvo ao Convento de S. Francisco. A salla destinada para a Aula, que tem 90 palmos de comprimento, estava apinhada de gente; até muitas das principaes Senhoras d’esta Cidade, tendo sido convidadas, assistirão este acto brilhantissimo. O Lente recitou um bem traçado discurso do qual daremos no próximo número copiosa noticia”[21].

E prossegue o jornal em sua narrativa pormenorizada de tão importante acontecimento para a história de São Paulo e do Brasil:
“Finda a oração dirigirão-se todos à Igreja, onde o Padre Mestre Guardião fez cantar um Te Deum em Ação de Graças. Depois foram todos convidados pelo Exmo. Director para servirem-se de doces e refrescos, que para isso estavão preparados numa esplendida e riquissima meza, a qual esteve franca a todo o Pôvo. Aí recitarão-se algumas Odes, e cantou-se um Hymno composto para solemnisar este acto. S. Exca. Reverendíssima fez cantar na Cathedral no dia 2 ao meio dia um Solemne Te Deum.
“Toda a Cidade se illuminou espontaneamente nas noites do 1º, 2º e 3º.
“Foi assim que o Povo d’esta Capital deu uma prova de seu regosijo, e de quanto sabe apreciar em seu justo valor este sucesso que, promettendo ao Brasil todo immensas vantagens, é para esta Província um manancial de Felicidade”[22].
Foi, assim…, com esse tom de verdadeiro acontecimento histórico, que foi vivida a primeira Aula Inaugural da nossa Escola.
Algo se pode dizer sobre o local em que ela ocorreu. Almeida Nogueira afirma que a tal sala de “90 palmos”, a que faz referência O Farol Paulistano, era a sala nº 2 do antigo edifício (demolido em meados da década de 1930), sala essa situada na parte posterior do convento, mais ou menos onde hoje está localizada a sala João Mendes Jr., e que tinha sido formada, conforme a proposta de Arouche Rendon, a partir da divisão da sacristia do antigo convento[23].
Quanto à assistência, além das numerosas senhoras da sociedade referidas pelo Farol, estavam presentes o Presidente da Província, Thomaz Xavier Garcia de Almeida, o Bispo diocesano, D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, autoridades civis e eclesiásticas, e…, presumivelmente, estudantes e familiares[24].

Que estudantes? Quantos eram?

Foram inicialmente 27 os alunos matriculados, mas chegaram a 33 até o fim daquele mês de março de 1828: 17 paulistas (9 da Capital e 8 de cidades do litoral ou do interior, como Iguape, São Sebastião, Sorocaba e Porto Feliz), 10 do Rio de Janeiro, 4 de Minas Gerais e 2 da Bahia[25].
Deles, uns, como o paulista Manuel Dias de Toledo, aqui se tornaram professores[26]; outros, como Vicente Pires da Motta e Manoel Joaquim do Amaral Gurgel, ambos paulistanos, além de mestres, chegaram a ser diretores da Escola[27]; e, ainda, vários outros, como José Antonio Pimenta Bueno, também paulistano, tiveram atuação destacada na vida política e diplomática do País[28].
E a primeira Aula Inaugural do Curso Jurídico de São Paulo? Sobre qual tema discorreu o insigne orador de 1828…?
Dele nada nos fala Almeida Nogueira, e isto por uma razão muito simples, que ele declina com toda honestidade: acompanhara a narração dos acontecimentos pela consulta à coleção de O Farol Paulistano emprestada pelo Dr. Brasílio Machado, mas nela faltava o número correspondente à descrição da aula, inexistente também na Biblioteca da Faculdade[29].
Da mesma forma, Spencer Vampré silencia sobre o discurso do Conselheiro Brotero, presumivelmente pela falta, também, de fontes[30].
Tendo localizado o referido exemplar no Arquivo do Estado de São Paulo, graças aos bons ofícios das competentes bibliotecárias Maria Lucia Beffa e Luciana Maria Napoleone (respectivamente diretora e supervisora técnica do serviço de atendimento ao usuário da nossa Biblioteca), acreditamos poder dar neste momento uma notícia inédita sobre aquela que foi a primeira Aula Inaugural da história desta Academia.

Ouçamos a narração:

“Depois de haver conciliado a attenção e benevolencia do numeroso auditório, que o escutava; depois de ter profusa, devida, e dignamente tecido o elogio de S.M.I. que tanto na fundação d’esta Escola Jurídica mostrou empenhar-se com desvelo mais que Real na prosperidade da Nação Brasileira; depois de ter resumida, mas vivamente louvado a Assembléia Geral, de cujo seio saíra a Lei salutar, estabeleceu as seguintes proposições. 1ª = Que a aplicação aos estudos, e a cultura das sciencias, é a primeira Lei divina natural. – 2ª = Que os Governos são obrigados pela sua essência a instituir Academias, ou Universidades para a propagação das sciencias; do que resulta um bem à humanidade em geral. – 3ª Que a Nação Brasileira, além do bem geral, terá um bem particular na creação dos dois Cursos Jurídicos decretados na Carta de Lei de 11 de Agosto. – Nas demostrações d’estas proposições – continua o jornal – se fazem notáveis algumas passagens (…)”[31].
Brotero, como professor da cadeira de Direito Natural que era, equivalente à nossa atual Introdução ao Estudo do Direito, procurava apresentar ao seu auditório, na estrutura tripartite da retórica clássica, o que ele considerava, pela cosmovisão da época, os fundamentos da ciência jurídica. Falava de um direito natural alicerçado na razão, cuja violação levaria o homem à ignorância, ao desprezo da inteligência, “tornando-o um mísero animal”.
A certa altura, afirmava: “A Sciencia Jurídica Social nos fornece as máximas da rasão as mais importantes,e as regras da sua conduta (…); nos mostra a nossa igualdade e liberdade (…); nos ensina que as sociedades são todas iguaes entre si, bem como os Homens também o são, isto é, que todos receberão iguaes direitos da mão da naturesa, tendo todos iguaes obrigações para com ella (…). Em uma palavra, pode-se dizer que a Sciencia Jurídica Social é a mesma alma da Sociedade (…). A Sciencia Jurídica Social é o maior dom que a Divindade consedeu aos mortaes”[32].
Não é o caso de descer aqui a maiores detalhes da exposição do Dr. Brotero. Quem tiver interesse, poderá consultar a referida fonte, agora que é do conhecimento público[33].
Além disso, quem quiser se aprofundar no pensamento e na figura do primeiro orador desta Escola, pode-se socorrer do excelente trabalho de autoria de Miguel Reale, intitulado “Avelar Brotero, ou a Ideologia sob as Arcadas – O primeiro professor da Academia”[34].
Hoje se fala em direitos humanos e em direitos fundamentais. Direitos estes que se consideram inerentes ao todo ser humano, que são expressão e exigência da sua dignidade de pessoas humanas. Fala-se e fala-se muito, com razão… E se deveria falar mais! Porque nunca como nestes tempos que correm, a pessoa humana tem sido tão desprezada e a sua dignidade tão vilipendiada!
O que vale uma vida, diante dessa onda de violência gratuita, sem sentido, a que temos assistido em nossos dias? Como não lembrar do menino João Hélio, brutalmente arrastado pelas ruas até ser morto, no Rio de Janeiro, há poucas semanas? Razão tinha Brotero quando afirmava que, se se desrespeitam esses direitos fundamentais, o homem se torna “um mísero animal”. Ou coisa pior!…, poderíamos glosar, por que o animal, afinal, segue as leis do instinto, da sua natureza, sem se ensanhar na violência covarde.
“Por uma visão humanista e universitária do Direito” foi o tema inicialmente pensado para a nossa aula de hoje… O direito é a seiva que vivifica a árvore da convivência social. Mas não um direito – ius – qualquer, e sim o direito da justiça: ius est autem a iustitia appelatum, (“o direito é assim chamado por derivar da justiça”), nas palavras de Ulpiano[35].
Uma visão do direito que se alicerce nos valores do respeito aos outros, no compromisso pela construção de uma sociedade verdadeiramente justa, que ofereça a todos oportunidades de se desenvolverem com dignidade, na plenitude de sua condição humana.

Uma visão humanista…

Homo sum, humani nihil a me alienum puto, dizia o escritor latino Terêncio. “Sou homem; nada do que é humano me é estranho”[36]. Visão humanista que leva a um direito verdadeiramente comprometido no serviço do homem, da sua plena realização, que se constitua em ferramenta efetiva para a consecução da justiça, que transcenda o formalismo vazio ou a mera técnica, tantas vezes ensinada e utilizada … para a obtenção de interesses pequenos!
O direito é um fenômeno eminentemente social: Ubi societas, ibi ius, diziam os antigos (“onde está a sociedade, lá está o direito”). Uma ciência (a jurisprudentia dos jurisconsultos romanos, como Gaio e Papiniano, dos quais os calouros logo ouvirão falar nas aulas de Direito Romano), que trabalha com a alteridade, regulando o direito de cada qual.
Nesse particular, é bom lembrar que o direito, pelo que tem de alteridade, exige solidariedade e preocupação pelos demais. “O meu direito vai até onde começa o direito dos outros”, diz a máxima jurídica. Essa postura deve ser encarnada numa conduta de autêntico respeito pelo direito dos nossos pares ao bom nome, à integridade física e moral, à liberdade em todas as suas legítimas formas de expressão… Calouros!: respeitem, tratem bem os seus colegas, os mestres e funcionários da Escola. Ponham em prática esta exigência do verdadeiro humanismo e da justiça, em todo o período dos seus estudos escolares!
O humanismo (humanitas na expressão cunhada pelos juristas romanos), evoca o sentimento da dignidade e sublimidade que é próprio da pessoa humana e a coloca por cima das demais criaturas existentes no mundo. Esse mesmo humanismo obriga o homem a construir a própria personalidade e a educar-se, mas, principalmente, e antes de mais nada, a respeitar e favorecer o desenvolvimento da personalidade dos outros[37].
Cabe ao jurista (e jurista é todo aquele que se dedica ao ius, ao direito) o dever de contribuir para a consecução de uma ordem social mais justa, mais humana, mobilizando para tal os meios ao seu alcance para resolver ou, ao menos, ajudar a resolver os grandes problemas sociais que afetam a humanidade. Calouros, não se sintam alheios a essa causa! Tomem consciência da própria responsabilidade e da necessidade de ações efetivas! Não compactuem com a cômoda posição de quem lança sobre os outros a responsabilidade pelas injustiças presentes[38]. Participem das atividades de extensão que são promovidas na Faculdade, particularmente do admirável trabalho desenvolvido pelo Departamento Jurídico do XI de Agosto, e, mais recentemente, pelo Juizado Especial Cível, no atendimento à população carente.
Visão humanista que implica na afirmação de princípios como o da igualdade natural das pessoas e o da democracia, e leva ao resgate de valores como a tolerância, a solidariedade, o respeito à diversidade e, ainda, a convivência e compreensão entre pessoas de religiões, culturas e raças diversas.
“Estou convencido de que respeitando a pessoa se promove a paz – afirmava recentemente o Papa Bento XVI- e que construindo a paz põem-se as bases para um autêntico humanismo integral. Assim é que se prepara um futuro sereno para as novas gerações”[39].
Visão humanista que leva a sentir a preocupação com o futuro da humanidade e do entorno em que vivemos, a assumir a responsabilidade de legar às gerações vindouras um hábitat sustentável, a proteger – sem “ecochatismos” – os recursos naturais e o equilíbrio ecológico.
Visão humanista que exige um compromisso firme com a ética e a defesa da verdade, em qualquer circunstância: no convívio familiar e social, nos relacionamentos de amizade, no exercício profissional ou na atividade política.
Não é demais lembrar alguns postulados comezinhos da ética, como “o fim não justifica os meios”, “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você”, ou aquele outro “nem tudo o que se pode, se deve fazer”. Tolas máximas moralizantes? Não! E como seria diferente o mundo se as pessoas as levassem mais a sério!
Compromisso com a verdade… Amicus Plato, sed magis amica veritas!, dizia Aristóteles: “Platão é meu amigo, mas a verdade é mais amiga”[40]. Aristóteles, discípulo de Platão, admirava o seu mestre, a profundidade de seus pensamentos e a retidão moral da sua vida, mas considerava mais importante do que tudo isso a procura da verdade – como conhecimento da natureza humana – e a sua aplicação em todos os aspectos da vida, em seus sentimentos e na sua conduta moral. Aprendamos!
Caras calouras e calouros: será missão vossa, nos próximos anos, aproveitar muito e bem a oportunidade que a sociedade lhes dá de estudar nesta Escola. Debrucem-se sobre os livros de teoria geral, conheçam o direito positivo, aprofundem no estado da jurisprudência…, mas não percam de vista esta visão humanista do direito!
Lembrem que o direito é uma arte. Nas elegantes palavras do jurisconsulto Celso, recolhidas por Ulpiano, ius est ars boni et aequi (o direito é a arte do bom e do eqüitativo, do justo em concreto)[41]. Uma arte, uma ciência prática, e não mera técnica ou norma fria. Como ciência que é leva ao conhecimento pelas causas, ao conhecimento do homem em primeiro lugar e da sociedade na qual ele se insere.

Por isso, o verdadeiro jurista deve ter uma visão multidisciplinar, poliédrica, da existência humana: deve conhecer, em primeiro lugar, a História, mestra da vida; deve conhecer, também, filosofia, antropologia, sociologia, ciência política, etc. É a isto que chamamos, no título desta palestra, “visão universitária do direito”. Uma visão multidisciplinar, que remonta aos tempos da criação da universidade medieval e ao próprio nome – Universitas Studiorum, universalidade de estudos e conhecimentos – que essas instituições ostentaram desde aquela época[42].
Assim, consideramos ser deveras conveniente que os nossos calouros procurem cursar algumas matérias na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (a tradicional FFLCH) e, em tempos de globalização, também na Faculdade de Economia e Administração (FEA) e no Instituto de Relações Internacionais.
Assim fazendo estarão a trilhar os passos de grandes mestres desta Escola, que se tornaram versados no conhecimento dessas outras ciências, e para os quais tal conhecimento representou, e representa, um diferencial no exercício de sua docência e de suas outras atividades profissionais.
Aproveitem, ainda, para estudar línguas estrangeiras, com a convicção de que cada uma delas é como uma porta que nos introduz num novo e insuspeitado universo cultural. Gastem o tempo com boas leituras, privilegiando os clássicos da literatura universal, que por alguma razão são clássicos!
Visão universitária significa, por fim, a consciência, que deve ser cultuada, de que formamos parte de um todo maior, que é a Universidade de São Paulo. Embora tenhamos uma história própria, aqui antes recordada, que remonta aos longínquos tempos da nossa independência, somos hoje a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Somos USP! E se a Faculdade de Direito é motivo de orgulho – que o é! – para a Universidade toda, nós também nos enriquecemos e somos valorizados atualmente, pelo Brasil afora, por integrarmos a melhor universidade do País!

A todas e a todos, muito obrigado pela atenção!

Referências
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Fontes:
O Farol Paulistano: n.72, de 15 de dezembro de 1827; n.77, de 05 de janeiro de 1828; n.85, de 1º de fevereiro de 1828; n. 86, de 06 de fevereiro de 1828; n. 89, de 16 de fevereiro de 1828; n. 91, de 27 de fevereiro de 1828; n. 92, de 1º de março de 1828; n. 93, de 05 de março de 1828; n. 94, de 08 de março de 1828; n. 98, de 22 de março de 1828; n. 104, de 16 de abril de 1828.
Digesto: Ulp., Libro primo institutionum, D. 1, 1, 1 pr.

Outras:
Heautontimorùmenos (“O inimigo de si próprio”), do ano 165 a. C. – Terêncio (Publius Terentius Afer).
Carta Octogesima Adveniens, de 14 de maio de 1971, n. 48 – Papa Paulo VI.
Homilia, Roma, 02 de dezembro de 2006 – Papa Bento XVI.
Vida de Aristóteles – Ammônio (Ammonius, comentarista de Aristóteles, na Alexandria de fins do séc. V e começos do séc. VI d.C).