” E foi então que os Acadêmicos roubaram o Badalo”
Texto de Adalberto José Queiroz Telles
de Camargo Aranha, da turma 1957,
publicado no “O XI de Agosto”
de 31 de maio de 1957.

Em São Paulo corria calmo o ano de 1834 como calmo correm os anos nas vilas de onze mil almas. São Paulo nada mais era que uma triste vilinha de onze mil almas, alguns negros cativos e uns tropeiros das bandas de Sorocaba. De especial só oferecia a Taverna do Chico Ilhéu, aonde se servia o melhor rum da Jamaica, pros lados do Pateo da Sé e o Curso Jurídico no convento franciscano do Pateo de São Francisco.
Ah… os cursos jurídicos… com seus alunos trouxeram um pouco mais de vida à província e um pouco mais de patacas ao Chico Ilhéu. A cidade era tão calma que até a lua não conseguira encontrá-la. Os lampiões os poucos lampiões, nada mais faziam nas noites senão transformar ainda mais os vultos dos acadêmicos que pelas ruas, vestindo capas negras, as sinhás-moças faziam as mais belas serenatas. Pelas rótulas das janelas elas olhavam assustadas, depois riam. Riam, pois o senhor da casa tinha o péssimo hábito de acordar com a música e aparecia fora de hora uma chuva miúda. As vezes esqueciam-se, por fora do liquido vinha o vaso.
Com os cursos jurídicos apareceram as repúblicas. As repúblicas eram famosas. Contavam-se as dezenas, três ou quatro quartos, uns vinte alunos e nas paredes quadros das mais famosas artistas de operetas vindas da Europa. Eram as “pin-up” de nossos avós. Em cada uma delas, encontramos também uma negra escrava que fazia de tudo, lavava a roupa, aprontava as refeições, arrumava a casa e etc. Quando os últimos lampiões das poucas casas se apagavam acendiam-se os das repúblicas. Reunia-se a Burschenschaften, desculpem a “bucha”, as belas valsas eram compostas e muitas páginas da nossa literatura nelas foram escritas. Era na época de um Castro Alves lutador, de um Álvares de Azevedo triste de um Varela saudoso. Pela primeira vez falava-se em luta. Abolição! República! Liberdade! Os estudantes de então não eram compreendidos no São Paulo de onze mil almas como não são os de hoje no São Paulo dos três milhões.
Quem passasse pela rua São José ao lado de uma latoaria veria algo de estranho. Num velho prédio cujas parede há anos vinham realizando a dança dos sete véus, cada ano despia-se de uma camada de tinta, por sobre a porta leve numa tabuleta tosca. “Curral dos Bichos”. Das repúblicas era a mais famosa pois nela morava uma espécie rara, um alemão. Seu nome? Júlio Frank. Vindo de? Talvez… nascido em? Quem sabem?… seus pais? Parece que… Cultura? Tinha demais. Aliado ao curioso costume de repetir aos alunos dos cursos jurídicos e com mais vantagens, as aulas do dia, de amar dos negros cativos e os rituais africanos tinha mais um exótico hábito, banhava-se todos os dias no Anhangabaú, um riacho que lerdo corria no fundo do vale, Aliás, São Paulo de então entre seus moradores contava com três alemães. O nosso Júlio, Martha cuja fama decorria do fato de ter lançado ao mundo Felipina, uns cabelos loiros que encimavam o mais belo corpo da Província. Todos a conheciam, Júlio Frank também. Certo dia, envergonhado, sua vistosa bengala e seu melhor e único costume, encontrava-se na porta com Pires da Motta, um morador da república que apesar de moço já se destacava.
– Bem… eu vou… eu vou até a biblioteca estudar as ordenações.
– Filipinas, concluiu o outro rindo.
O correio da corte trouxera a notícia que sacudira a província. Estava aberto o concurso para catedrático de história do curso anexo ao curso de ciências jurídica da Província de São Paulo.
– x –
Pois vai ser um sucesso. Quem assim falava era Arouche Rendon, ou melhor o Tenente General José Arouche de Toledo Rendon, primeiro diretor da Faculdade de Direito. Morava um pouco afastado, no morro do chá e a todos prognosticava que dentro de poucos anos São Paulo seria o maior exportador de chá do mundo. Errara por pouco, seria de café.
– Pois é o que eu estou dizendo, vai ser um sucesso. Inscritos no concurso tem dois barões e dizem que vem um professor de Coimbra! ah… tem também um alemão inscrito pelos estudantes… tal de…
– Júlio Frank! Pois é por isso que eu estou aqui. Frente a Arouche Rendon, espantado como a espera de um segundo dilúvio encontrava-se o superior franciscano. – Pois esse alemão não pode vencer!
– É verdade que é um desconhecido, não tem nenhum título, mas porque não pode vencer?
– Porque é um protestante. E olhando para certificar-se que ninguém estava ouvindo…
– Dizem mais, dizem que é um judeu!
Perante a banca os candidatos desfilaram os títulos e as vez um pouco de cultura. Dias depois o bedel Ferreira, cuja única função era a de amarrar os cavalos dos professores o que, a bem da verdade fazia com singular maestria, duas voltas a direita, uma a esquerda, um laço, lia o decreto da corte datado de 7 de julho de 1834 em que por concurso era nomeado “professor de História e Geografia do Curso Anexo ao Curso Jurídico da Província de São Paulo ao Sr. Júlio Frank” que inscrevera-se como nascido em 8 de dezembro de 1808, filho de Karl Frank e Carlota Frederica Harrlau, chamar-se João Júlio Godofredo Luis Frank e dera como cidade de nascimento Gotha.
– Viva o Curral dos Bichos!
– Viva a Academia!
A noite no Curral dos Bichos o lampião não se apagou! Bebia-se, ria-se e cantava-se. Pela primeira vez a bucha sorria.
No Pateo de São Francisco, na mesma noite, um segundo lampião permanecia aceso na escura São Paulo. Era a cela do superior franciscano cujos gestos não permitiam esconder o que lhe ia na alma.
– Aonde já se viu… que terra estamos… um protestante!
Era no tempo em que a entrada da faculdade se fazia pela mesma porta que a igreja.
Por ela entravam beatas trazendo o breviário às mãos e estudantes às mãos trazendo as ordenações. Algumas vezes, é verdade, traziam outros livros. Eles tinham mais cultura do que nos, também durante as aulas liam Victor Hugo e nos… bem, esse é um outro assunto.
As aulas de Júlio Frank tornaram-se logo as mais apreciadas pelos acadêmicos. A ela nosso Júlio dedicava-se com todo carinho e notando a falta de um livro para estudos escrevera um. Na capa lia-se: “Resumo de História Universal”. Para uso da Aula de História e Geografia da Academia de Ciência Jurídicas e Sociais desta cidade de São Paulo Vol.I contendo a História Antiga e a Idade Média – Impresso na tipografia de M. F. Costa Silveira – Rua S. Gonçalo nº 14 – São Paulo Seu preço? Dois mil e novecentos reis. Talvez o primeiro livro escrito por um professor desta faculdade. Mas se as aulas se dedicavam com especial carinho o mesmo não acontecia com a congregação. Entre os Professores não tinha nenhum amigo isso é verdade, mas por culpa sua. Continuava morando no Curral dos Bichos, amando a boemia, tomando banho no Anhangabaú e estudando, cada vez mais, anatomia nas ordenações filipinas, agora já sem capa e menos ordenações. Dos frades do convento não recebia um bom dia, ou melhor, dava-se com um deles, Frei Targino que lecionava latim na Escola do Rabecão e que um dia, quase foi expulso por ter sido encontrado em sua cela lendo “Candide”.
O superior de São Francisco não podia aceitar a situação. Mas como, em que terra estamos?
– Achei! Achei! Um sorriso diabólico transparecia no rosto do santo homem. – O Godinho… aonde está o Godinho… aonde está o Godinho?
Enquanto Júlio Frank estudava sua aula do dia seguinte, o superior e Godinho tramavam.
– x –
Os acadêmicos esperavam a entrada do mestre-amigo (Júlio Frank) para a aula de História.
– Bom dia senhores. Com suas vestes pretas preparava-se para a aula como quem prepara-se para um ato religioso.
– Como os senhores sabem, com a queda o Império Romano dividiu-se em…
– Blém… Belém… Blém…
– Como? Os sinos a estas horas?
No alto do convento, segurando a corda, badalando furiosamente Godinho sorria para o superior que esboçava o ar de vencedor de céu é o limite.
Silencio.
– Como os senhores sabem, com a queda o Império Romano dividiu-se…
– Blém… Belém… Blém…
E Júlio Frank não passou daí. Era só começar, Godinho badalava furiosamente.
Os dias corriam na mansidão provinciana, Júlio Frank com sua voz tentava dividir o Império Romano e Godinho com as badaladas o sino. Subiam os alunos para as aulas e Godinho atrás. Em posição de sentinela aguardava as ordens do superior para iniciar a artilharia de sons.
Calmo o professor de história olha o sino… tenta investir… – Como os senhores sabem, com a queda o Império Romano dividiu-se em…
O superior dá ordens de fogo. Godinho segura a corda e… Ai!… gritando desce a escada sem ter o cuidado de pisar os degraus…
– Roubaram!… Frei…! Roubaram o badalo!
A noite, os acadêmicos no altar da bucha no Curral dos Bichos depositavam um novo ornamento. O badalo da faculdade!