Retrospectiva Sidney Gioielli

O cronista das Arcadas era da turma 1954, tendo nos deixado aos 75 anos, em fevereiro de 2005.

Hoje destacamos de seu livro

“Os Filhos Joviais de São Francisco”

O texto: Um Elefante nem Sempre Jovial

Aprecie.

 

O Centro seria inconcebível sem o Chico Elefante. Aquele homem franzino, que havia anos dispensou os dentes incisivos, ostentando apenas os dois caninos que lhe valeram o apelido perpétuo, dir-se-ia que morava ao mesmo tempo no restaurante do Onze e no afeto dos acadêmicos.

É verdade que se tratava de um amor de apache, porque ora o Elefante puxava uma enorme faca de cortar frios para ameaçar os estudantes, ora eram eles que o azucrinam a ponto de perder a paciência. Subjacente, porém, persistia um relacionamento afetivo, sem o qual nenhuma das partes parecia sobreviver.

A bem dizer, Chico detestava o apelido que lhe puseram e, muitas vezes, por causa dele é que exibia seu facão ameaçador e inofensivo a um só tempo.

Temendo enfurecê-lo, mas não dispensando a oportunidade de arreliá-lo, alguns alunos dirigiam-se a ele em tom reverente:

– Senhor Francisco Paquiderme!

A ironia, em vez de suavizar, só contribuía para agravar a irritação do nem sempre paciente concessionário dos serviços de bar e restaurante do Centro.

Foram muitas as brincadeiras que o Chico Elefante teve de suportar em seu convívio com os acadêmicos, a mais pesada das quais consistiu em seu sequestro, posto em prática por membros do Partido Acadêmico Libertador, ano de 1940.

Germinal Feijó e alguns correligionários viram nesse gesto a oportunidade de conseguir a publicidade que a imprensa da época, coagida pela ditadura getulista, lhes negava. Prometendo um opíparo banquete ao Chico Elefante, levaram-no, contudo, para uma chácara distante, onde o retiveram amavelmente por longos sete dias.

O senhor Francisco Paquiderme – que na vida civil atendia também pelo prosaico nome de Francisco Ramos – ao perceber o engodo em que caíra, chegou a pensar no pior, pois poucos dias antes, seus queridos estudantes haviam furtado uma capivara do jardim da Luz, fazendo-a reaparecer assada na mesa de um conhecido restaurante da cidade, onde a deglutiram gostosamente. Certamente que, antes, devem ter fundado a Ordem da Capivara…

O simplório homenzinho assustou-se sinceramente ao saber que o prometido banquete, na verdade, era um sequestro; mas depois de se convencer de que estava entre velhos amigos, aproveitou as férias forçadas para pescar e cavalgar.

Seu reaparecimento não se deu numa bandeja decorada com limões e folhas de alface, como ele chegou a temer, mas em plena Praça da República, diante de fotógrafos e repórteres vorazes, exatamente como o Partido Libertador planejava.

~o~

Em meu tempo, ocorreu um dos fatos mais curiosos a que alguém poderia assistir numa grande cidade e que acabou por se refletir de forma indireta na tranquilidade de respeitável concessionário de nosso restaurante. Um circo famoso acabara de se instalar num terreno baldio de São Paulo e, como era de hábito nestas ocasiões, os donos promoveram um desfile pelas ruas centrais, com a finalidade de divulgar sua presença na cidade.

À frente, alto-falantes iam anunciando as atrações do circo, enquanto palhaços, anões, gigantes e jaulas de feras seguiam atrás, no que se assemelhava a um cortejo carnavalesco.

Encerrando o séquito, caminhava uma fila de elefantes que, para se manterem unidos, seguravam com a tromba a cauda do companheiro da frente.

No Largo de São Francisco, os acadêmicos preparam-se para uma passeata, soltando foguetes e fazendo a habitual algazarra, quando os circenses surgiram na esquina da Rua Benjamin Constant. De súbito, irrompeu uma furiosa luta entre dois elefantes, bem na frente da Faculdade. Tudo começou quando um deles fustigou um filhote que lhe havia puxado seguidamente a cauda, no afã de se agarrar a ela para poder acompanhar o ritmo dos adultos. O animal de trás, possivelmente a mãe do elefantinho, pôs-se em sua defesa, arremetendo contra o agressor.

Os dois imensos paquidermes, a princípio, empurravam-se de um lado para o outro, como se cada um quisesse apenas afastar o adversário do caminho. Mas o ruído do foguetório e o crescente enfureci mento que o próprio combate gerava fizeram com que os monstros redobrassem sua ferocidade, levantando-se nas patas traseiras, barrindo e agredindo-se selvagemente.

Num certo momento, um deles foi jogado contra a vitrina da Casa dos Presentes, na esquina do Largo de São Francisco com o Largo do Ouvidor – fragmentando-a à maneira de uma casca de ovo.

Quando parecia que já haviam sido contidos por seus domadores, os descontrolados animais saíram correndo em direção à Faculdade, fazendo crer que o vencedor só iria saciar-se ante a visão de seu adversário batendo em retirada.

O Pátio da Escola foi nosso inevitável refúgio, havendo até quem começasse a fechar as portas de ferro da entrada, tal proximidade a que chegaram os animalões. Com habilidade e coragem, porém, os domadores aos poucos conseguiram subjugar os contendores e o desfile do circo retomou seu curso normal.

A essa altura, um grupo de estudantes já havia rumado para o Centro, para infernizar o pobre Chico Elefante.

Um deles, simulando grande desespero, entrou no restaurante aos berros:

– Corre apartar, Chico, que a tua família está quebrando o pau lá em cima!