O Folha Dobrada n° 26, que sai em novembro 2007, fará uma chamada para este texto que ora publicamos na íntegra. Contribuição dos Antigos Alunos Yazid Gattaz – que nos enviou – e Ivo S. Sooma, que o escreveu, registrando para a posteridade das Arcadas uma “estudantada” no nosso estilo, sendo ambos coparticipantes.
Não deixe de ler. Você vai rir e recordar que muito provavelmente perpetuou algo parecido.
Uma Noitada Franciscana
Ivo S. Sooma
I
Sexta-feira, véspera da “Peruada” de 1960. Estava no Bidú, do velho Réa, com Yazid Gattaz, tomando chope.
Depois de comentar a rápida passagem, por cima das prateleiras, do Simão, rato assim batizado pelo seu protetor, Chico Emígdio, Gattaz me comunicou que iria ao Centro Acadêmico ver se chegara sua batina, encomendada à Casa do Ator, com que pretendia participar da “Peruada”.
Não demorou, chegou ele, já devidamente paramentado.
– Ói aqui japonês. Sua batina tá lá.
Fomos ao Centro Acadêmico, Gattaz tinha acertado nas medidas da minha batina.
Agora os dois paramentados, fomos ao bar em frente à Faculdade, do “Cabeça de Coxinha”, onde estavam já Roberto Manna Moraes, João Crisóstomo Bueno dos Reis Neto e Ruy Silveira.
O dinheiro estava mais curto, encomendamos cachaça.
Senti uma presença, virei-me, estava diante de um pedinte italiano, chorando e dizendo:
“Padre, io suono un peccatôre”.
Gattaz benzeu-o com auxílio de cachaça, dirigi-me ele.
Pouco mais de um ano antes, em substituição ao Papa Pio XII, havia assumido o pontificado o Papa João XXIII.
Confortei o italiano, dizendo-lhe que o novo Papa havia anistiado todos os pecados, ninguém mais era pecador até aquela data.
O anistiado seguiu seu caminho, ainda em soluços.
Gattaz foi para a Faculdade onde, na Sala “João Arruda”, havia uma reunião do Penn Clube.
Aproximou-se Ênio Ferreira de Moraes, que ali chegara e a tudo havia assistido.
Ênio havia lançado um livro, “Alcália e Outros Contos”, de quase nenhuma venda, o que não lhe pesava muito no bolso, pois havia ele herdado regular fortuna, e estava praticando exercícios de prodigalidade, tendo já feito várias viagens à Bolívia e ao Peru.
Chegou-se, sorridente.
– Vejo dois simpáticos reverendos. Ênio convida os dois reverendos para uma incursão pela noite, Ênio pagará tudo.
Fomos Ênio, Robertão, Ruy Silveira, João Crisóstomo e eu até a Faculdade, na área contígua à Sala João Arruda, onde até hoje se encontra o túmulo do Júlio Frank, Páteo que se comunica por uma janela com aquela sala e dali pudemos ver o Gattaz, vestido de batina, sentado à mesa de trabalho.
Acenamos pedindo a Gattaz que viesse para junto de nós, ele deixou a mesa, sob espanto dos presentes à reunião, veio em direção à janela e, pulando-a, reuniu-se conosco.
II
Formada a comitiva, seguimos caminho para Rua Major Sertório. Entramos no “Galo Vermelho”, quando uma prima gritou:
– Olha um padre! E é japonês!
Imediatamente, a “gerente da boate” ordenou ao maitre providenciar uma mesa de pista para os “padres”. Os Garçons desalojaram clientes de uma mesa bem situada para que nela sentássemos.
Retirou-se e, logo, voltou com um litro de “scocth”, sentou-se e disse:
– Para os padres.
Após algumas doses, retiramo-nos, eu com o litro de uísque de baixo do braço direito, e uma jovem de cabelos negros no braço esquerdo, entramos no “Michel”, saímos, entramos e saímos de outras boates, uma multidão nos carregando nos ombros, acompanhando e engrossando a turba após cada visita.
Chegamos ao “Dakar”.
Uma larga pista de danças, animada por um conjunto.
Pedi licença para ocupar o microfone.
Arno Preis, que estudara em seminário catarinense, havia-me ensinado o sotaque alemão de seus professores.
Iniciei meu sermão, diante de olhares curiosos por ver um padre japonês com sotaque alemão, pregando em uma boate, na madrugada.
Disse-lhes que, com o novo Papa, a Igreja havia iniciado um novo ciclo evangelizador, deixando os limites de pedra de seus templos e indo à procura das ovelhas desgarradas na noite.
Fui breve, pois sofria o risco de desmascaramento.
Voltamos ao “Galo Vermelho”, lá deixei a jovem ovelha, de lá seguimos para comer uma feijoada no Largo do Arouche.
III
Ceávamos, cerca de 5 horas da madrugada, uma feijoada na Adega Arouche, em alegre companhia, quando um garçom se aproximou de Gattaz e, em seu ouvido, disse que um inspetor da Guarda Civil, estava à porta, com uma viatura da Rádio Patrulha, e solicitava que um dos “padres” fosse até ele. Gattaz foi.
O inspetor, respeitosamente, informou que havia ordem partida da Cúria Metropolitana, que se encontrava reunida, para que nos conduzisse até a sua sede.
Gattaz explicou que não éramos padres verdadeiramente e, sim, acadêmicos do Largo de São Francisco.
O inspetor, então, desabou sobre uma mureta que havia na entrada do restaurante, e desatou a gargalhar. Disse, então, que nos procurava á tempo pela madrugada. Foi até a viatura e, pelo rádio, informou que se tratava de estudantes de direito. Recebeu ordem para nos deixar e, despedindo-se do Gattaz, retirou-se, com os demais guardas civis às risadas.
Depois da feijoada, Ênio tomou destino ignorado, Gattaz e Robertão foram para a Casa do Estudante, João Crisóstomo para a sua.
Eu fui para o apartamento do Ruy, na Mooca, onde dormi.
IV
De manhã, percebi que havia dormido vestido com a batina, estava com uma sede cruel, fui de batina mesmo comprar água mineral.
No caminho fui interceptado por dois meninos, andando em um velocípede de três rodas, que me pediram santinhos.
Disse-lhes que voltaria logo com os santinhos, eles juntaram as mãos pedindo benção, eu não sabia o que devia falar, soltei umas palavras latinas e fui saindo de fininho.
Depois de tomar a água, fui ao ponto de ônibus.
Notei que algumas pessoas me olhavam com incredulidade, estava chegando mais gente, e fiquei preocupado, porque se descobrissem que não era padre, já haveria gente suficiente para um linchamento.
Pensei em pegar um táxi, mas não teria dinheiro, nisso providencialmente chegou o noivo da Daise, secretária do Centro Acadêmico.
Quando ele estava já começando a esboçar um ar de surpresa, tirei-o de lado, dizendo:
– Estou indo para a “Peruada”. Você tem dinheiro para um táxi?
Tinha, dali tomamos um táxi e, na Praça Clóvis Bevilacqua encontramos a “Peruada”, à qual me incorporei, livre do linchamento.
Na segunda-feira, pela manhã, Joaquim de Oliveira, porteiro da Faculdade nos avisou que o Diretor, Prof. Gama e Silva, conhecido por “Gaminha”, estava à nossa procura e devia estar acontecendo algo de grave conosco.
Fomos a Tesouraria falar com Chico Emídio, que nos comunicou que o Prof. Gama “estava uma onça”, pois havia recebido um telefonema do Cardeal, reclamando pelo acontecido.
Mandou que esperássemos e foi à Diretoria, de onde voltou dizendo:
– O “Gaminha” está uma fera, a coisa está brava, vai dar de suspensão para cima.
– Vocês subam até a Diretoria, eu vou junto, vocês ouçam tudo em silêncio, não digam uma única palavra.
Na Diretoria, recebemos um sermão, no qual por várias vezes ouvimos as palavras “cafajestes”, “irresponsável”, “falta de respeito” e outras mais.
Ao final, o Prof.º Gama nos falou que iria comunicar o fato à Congregação, para que ela decidisse as medidas a tomar.
V
À noite, estávamos Gattaz e eu no bar do “Cabeça de Coxinha”, quando chegou o bedel Dirceu, dizendo que o Chico Emígdio estava nos chamando na Tesouraria.
Ali o Emídio, com um enorme sorriso, nos disse que, depois do sermão, o Prof. Gama havia caído em risadas, e estava querendo tomar um chope conosco, para saber como foi a história.
Fomos ao Bidú, ponto inicial dos acontecimentos e ali, como ocorrera com o pedinte italiano, recebemos também a nossa anistia.